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sábado, 29 de março de 2008

Os poemas de López



Creio que o poema, ainda sem título, seja uma manifestação da amplitude da tristeza do personagem, Ernesto López.


Em López encontramos constantemente uma excepcional negação da vida e de suas possibilidades. Mas o posicionamento do poeta é sempre paradoxal: viver e morrer são quase que sinônimos em sua poesia.


Concebi o poema num dia chuvoso e utilizei o meu próprio sentimento de desconforto para torná-lo uma fala contundente de López.


Talvez o poema nos leve a um passo da heteronímia de Pessoa, porque nele há, de fato, a fala de um personagem, ou seja, trata-se de tornar os versos as partes de um monólogo interior e que por vezes é semelhante a uma conversa.


O poema de López é uma fala e sua trajetória rumo ao suícidio compõem o enredo de uma peça de dramaturgia. Destarte, o livro de López pode talvez ser menos um aglomerado de poemas e mais a fala de um persoangem em cena.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Uma das mortes de Franz Eddie




Dois dias com o corpo jogado sobre a cama. Dois dias:


Um calhamaço de papel em branco.


Já estou pálido: e o cabelo e a barba crescem.


Já estou velho: dois dias.





Por que exigem que eu seja herói?


Joguei os meus santinhos de porcelana para fora do meu peito,


Mas eles insistem em amendrontar as tardes silenciosas,


Em que o lago de Montgeron parece um aglomerado azul-escuro


De aflições estáticas.





Por que a Sra. Hoschedé passeia sozinha neste outono triste?


Não! Não! Não! Vou sepultar o meu defunto


Sobre a colina do horizonte onde ainda brilha o sol.


Por Deus, não esqueça as flores da orla de Gennevilliers.


Avise a todos que toda lágrima é proibida


E a cerimônia iniciará somente com a chegada da Sta. Jeanne-Marguerite Lecadre.





Dois dias e eu não tenho fome


E a cama é meu cruel ressinto


E morrer é como não pedir perdão.


Não vou levantar, porque a morte é a mais infeliz das perdas


E viver é um ato criminoso.





Quando Eddie e eu fomos para o sítio de Andrews


Tínhamos esperanças de que a morte


Só chegaria em dezembro.


Mas a penunbra traiçoeira escavou o meu pulmão


Em meados de setembro.



(Ernesto López)

Não se trata de um poema concluído, mas de um rascunho. Tenho tratado com cuidado um certo poema "A morte de Franz Eddie". Deve este ser uma peça marcante do "Livro da embriaguez", o livro de poesia que estou preparando e que, em verdade, é o monólogo de um só personagem: Ernesto López.

Há uma primeira parte do poema "A morte de Franz Eddie" que penso está melhor elaborada. Esta segunda parte ainda se mantém um tanto crua, com construções um tanto pobres.

Fiz uma opção que exige logo do leitor uma relação com as artes plásticas, pois todo o poema está pautado em referências à obra de Monet.

A paisagem idealizada para a morte de Eddie são as paisagens pintadas por Monet. Trata-se de uma morte composta com o colorido desse artista, com as figuras de senhoras segurando sombrinhas e andando por campos de papoulas vermelhas.

Espero alcançar um resultado de maior elaborção.

Bob Dylan por Caetano Veloso





Bob Dylan não era um fenômeno comercial como os Beatles, mas, de certa forma, era mais conhecido do que os Rolling Stones no Brasil quando essas novidades nos foram apresentadas. Os Stones podiam ter tido "Satisfaction" nas paradas, mas Dylan já tinha admiradores seletos havia muito mais tempo. Lembro mesmo de ouvir um lado inteiro de um LP seu com Toquinho, em sua casa, na época em que andavamos juntos, ele, Chico e eu, por São Paulo, antes de eu me mudar pra lá. Toquinho queria minha opinião, pois lhe parecia demasiadamente enfadonho um disco - segundo lembro de ouvi-lo frisar - com todas as musicas cantadas e tocadas no mesmo tom. Achei curiosa a voz fanha e o jeito sujo de tocar violão e gaita. Não entendia nada das letras e terminei por me aborrecer também. Agora, o tropicalismo estabelecido, eu ouvi e reouvia maravilhado "Bringing it all back home", que Peticov me recomendara. Até hoje, esse é o disco de Dylan que mais me emociona. Eu continuava a não entender quase nada das letras, mas a atmosfera, a emissão vocal, o bem captado desleixo, o timbre geral de sofisticação alcançada sem o esforço de elaboração dos Beatles. Lembro de muitas vezes ter entendido erradamente o texto das canções e, sabendo que ele não estava dizendo o que eu supunha ouvir, ter chegado a frases e idéias que me soavam maravilhosas, algumas das quais eu talvez tenha usado como sugestão para letras de minhas próprias canções. Mas nao se pode dizer que eu preferisse Dylan aos Beatles. Eu sabia de sua respeitabilidade e seu som sugeria uma mente mais culta do que a dos melhores roqueiros ingleses, mas, comparados a verbosidade de suas canções caudalosas e a retórica que se adivinhava do que era inteligível nas letras (meu inglês era meramente ginasial)


Os Beatles pareciam muito mais construtivos e enxutos. Por outro lado, o experimentalismo ostensivo de "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" estava mais próximo nao só do que fazíamos como dos grandes artistas que eu admirava, fossem eles Godard, Oswald, Augusto de Campos, João Cabral. Joyce, Lewis Carrol ou e.e. cummings. Embora os Beatles fossem obviamente mais ingênuos, Dylan parecia atrelado a uma concepção romântica do poeta, sem as excursões (explícitas) pela metalinguagem, pelo atonalismo e pelo concretismo que os Beatles apresentavam. Além disso, nunca me senti atraído pelo ambiente country americano, do qual ele tanto se aproximou. Até hoje, no entanto, a densidade de Dylan me interessa e sua personalidade artística me apaixona. Observo que o ouço hoje mais do que ouço os Beatles - e para maior proveito. Recentemente vi, por acaso, um número do seu "Acústico MTV" ( era "With God on our side") e fiquei profundamente comovido. Ele é uma figura a um tempo central e à parte no panorama dos anos 60 - e um traço forte do século. Um dos mais impressionantes exemplos da pujança criativa da cultura popular americana, da cultura americana tout court. No momento em que os ingleses dominavam o jogo com sua versao do rock'n'roll do lado de lá do Atlântico, do lado de cá Dylan ja apresentava o espessamento desse caldo em que Beatles e Rolling Stones beberam, mostrando onde está a nascente e de onde jorra a energia. E a gente sabe que Hendrix deve a ele tudo o que nao deve aos grupos inglês ( embora deva "tudo" ao público inglês).


Caetano Veloso em Vereda tropical.