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quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Breviário - Para Jeovane camargo

São Paulo, 13 de novembro 2008
Meu caro Jeovane,
Há uma música do Renato Russo, em que ele afirma que alguns falam muito por não ter nada a dizer. Talvez eu tenha poética e literariamente algo a dizer. E vou dizer. Não tardará uma publicação de O livro da Embriaguez, o que não significa nada, mas é uma documentção, uma chave que pode abrir portas.
Uma amiga minha de infância, católica até a alma, escreveu horrores sobre um poema meu em que eu repito inúmeras vezes "que venha a cruz". Disse que não sou o mesmo.Em verdade, O Livro da Embriaguez é um texto niilista. Está lá Nietzsche e todos que pensaram a idéia de absurdo, como Kafka, Sartre, Camus e Beckett. Está lá Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa, Bukowski, Whitman e Lorca.
Fico com certo receio de que seja o meu primeiro livro de poesia, porque talvez se feche as portas das universidades religiosas, por exemplo, ou me olhem como um ateuzinho de merda. Mas nem sou ateu. Sou panteísta. O certo é o meu livro não é em nada católico.
Não tenho obrigação de ficar para a história, mas a convicção de que é possível amadurecer a cada novo texto.
Grande abraço,
Rudinei Borges

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

O diário de Judas

Às três da tarde sai de casa, segurando dentro do corpo uma fome canina. Eu precisava comer qualquer coisa antes que o mau humor deixasse o plano das idéias e se erguesse concretamente para além de mim, como se fosse uma entidade real: um homem ou uma mulher com as mãos trêmulas e a boca espumando. O certo é que o mau humor toma conta de mim quando sinto fome. Porque a fome é como o tédio. Eu estava na rua e levava os meus músculos e os meus ossos, revestidos duma pele morena, para a padaria que fica na esquina da Avenida Brigadeiro Jordão com a Agostinho Gomes (nomes de homens que não sei quem foram, nem o que fizeram, mas eles permeiam e atormentam minha memória e dão fome. Uma tarde, como a de hoje, deitei-me no sofá da sala e num cochilo vi-me diante desse Sr. Brigadeiro Jordão. Porém, ele não era um homem. Era a cópia fiel do espectro da morte (como num filme de Bergman) e queria jogar xadrez comigo. Não. Eu não sei jogar xadrez. Sou um animal inapto aos jogos. Sai correndo como quem corre de um cão raivoso. E acordei suado. Foi o meu único sonho com este senhor.) Mas antes que eu chegasse à padaria aconteceu-me algo inesperado e terno e idiota: o vento brincava sobre as calçadas e sobre as calçadas trouxe para os meu pés um folheto amarelado e velho,desses que as igrejas distribuem de porta em porta. Havia uma pergunta grande, centralizada e em negrito: gostaria de conhecer a verdade? Nesse momento as palavras soltaram em qualquer parte de minha mente onde elas moram (que não é na esquina da Avenida Brigadeiro Jordão com a Agostinho Gomes): Sim. Não. Não. Sim. Eu quero conhecer a verdade. Eu não quero conhecer a verdade. Assim, num desapego súbito pus os meus pés sobre as folhas e continuei andando. Um folheto não poderia me dizer o que, de fato, é a verdade. E se dissesse de que adiantaria se tenho contas para pagar. Mas próximo à padaria retornei. Algo naquele tom amarelado do folheto resgatava um quê de saudades. Pus, então, entre as mãos aquele folheto e o li em parte, enquanto esperava algo para comer. (Uma tarde, como a de hoje, entrei numa biblioteca convicto de que encontraria o livro mais antigo que houvesse ali. Depois de horas numa caçada épica, encontrei um caderno grande, onde estavam escritas as atas de uma antiga associação de moradores da cidade. A primeira ata datava de mais de cem anos. A maioria das laudas de tom amarelado, como aquele folheto, estava em branco. Assim, como quem quisesse guardar algo antigo, arranquei duas laudas e coloquei no bolso. Era quase um orgulho possuir uma velharia mínima como aquela. Fiquei com elas por anos. E, agora, não recordo onde as deixei. Este folheto também se perderá entre as minhas coisas. Se perderá, decerto, sem nenhum significado, porque talvez eu nunca volte a ler o que há escrito abaixo da indagação sobre conhecer a verdade. E talvez eu nunca conheça o que é a verdade.

Um rapaz de estatura média, branco e magro, vestido de camisa e calça brancas e um avental cor de vinho tinto (como se estivesse intimidado diante dos meus músculos e dos meus ossos, revestidos duma pele morena) trouxe-me um prato com comida e um copo com gelo e refrigerante. Depois os talheres e uma ficha (de número 130) onde estavam anotados os meus gastos. 130 anos talvez seja a idade da lauda que furtei do caderno grande na biblioteca. 130 talvez seja o meu número da sorte ou o número da casa de alguém que vou conhecer e amar por toda a vida. Ou talvez seja somente o número da ficha. Peguei os talheres e comecei a comer célere como um automóvel. Quando vi que me olhavam decidi comer devagar. Mas tudo naquela padaria parecia-me um incômodo infindo e se misturava em minha mente como as palavras. Dois homens sentados no balcão comiam hambúrguer com a boca aberta. Um hambúrguer gigante numa fotografia na parede me fazia fechar os olhos. Um papel amassado perdia-se sob uma das mesas em meio às embalagens de chicletes. A cada segundo uma nova pessoa chegava e uma nova pessoa saia. O rapaz de estatura média, branco e magro, vestido de camisa e calça brancas e um avental cor de vinho tinto (como se estivesse intimidado diante dos meus músculos e dos meus ossos, revestidos duma pele morena) continuava levando pratos com comida e copos com gelo e refrigerante (às vezes suco) para as mesas. E depois os talheres e uma ficha (que eram de números diferentes de 130). Um cheiro forte de pão vinha de dentro da cozinha. Os garçons suavam e suavam também as canetas que eles carregavam nas mãos para anotar os gastos dos clientes nas fichas. Um garçom de longe acenou para mim. Eu gentilmente sorri. Não sabia que me conheciam. Mostrei a ficha. Já estou com a ficha, eu disse. O número é centro e trinta, murmurei. Três rapazes e um homem velho comiam na mesa à minha frente. Um deles balança a perna um tanto desconfortável. Do outro lado de minha mesa uma senhora idosa vestida de azul arrastava-se com uma muleta para ir embora. Um homem estranho sentou-se à minha frente. Ele estava vestido todo de preto. Os braços estavam cruzados. Ele olhava para a rua como se contasse as pessoas que passavam na Avenida Brigadeiro Jordão. Ele usava um óculo preto. Um garçom trouxe um pão para ele. Ele comia célere como um automóvel, mas como viu que eu olhava decidiu comer devagar. O céu e o vento anunciavam que logo iria chover, enquanto um dos garçons segurava uma cesta com mostarda e ketchup. Ele colocou a cesta dentro de um armário que ficava próximo às mesas dos clientes. O homem vestido todo de preto levantou e foi embora. Por um instante só havia eu naquela parte da padaria. E eu olhava para o nada, para os potes de açúcar enfileirados num balcão. Outro garçom me cumprimenta. Deixo o semblante entregar-se num sorriso largo. Já estou com a ficha, eu disse. O número é centro e trinta (dessa vez não murmurei). Um pombo sujo caminha sobre a calçada onde encontrei o folheto. Duas mulheres andam apressadas na rua. Elas entram na padaria. Elas seguem uma fila para comprar algum pão ou doce. Dois velhos estão sentados próximo ao telefone público do outro lado da esquina. E riem e conversam e olham para mim. Eu não rio e não digo nada. Não tinha mais fome e o mau humor não poderia me dominar. Estava farto. Bocejei.
Rudinei Borges

Agostina Musson


Estelle Musson - Degas


Agostina Segatori - Van Gogh

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Agostina Musson: junção dos nomes Agostina Segatori (italiana que vivia em Paris. Van Gogh a conheceu em janeiro de 1887, ano em que pintou A taliana) e Estelle Musson (prima e, posteriormente, cunhada de Degas. Ela foi retratada por Degas em Mulher com vaso).

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Carta de Agostina Musson

21 de outubro 2008
Li o seu poema, Embriaguez. Fiquei indignada pelo tom obscuro de seu texto e pelas icógnitas existentes. Peço que reformule e o proibo de incluir nele o nome de minha querida e santa madrinha, Amélia Lages. Ela ficaria muito triste ao ver como você se encontra, tentando se esconder de sua própria verdade, para não dizer realidade. Seja digno de tudo, principalmente das pessoas que um dia o admiraram.
Agostina Musson