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domingo, 28 de novembro de 2010

O diabo vive

Este sou eu.
Esta criatura breve e terna
que tenta visitar o mundo antigo.
Em Paris o que sou? Este homem da América do sul.
Este astronauta.
A peste de Artaud.
Sou um pântano tenebroso.
Um rio fundo como o Amazonas.
Este mar que não vejo há anos.
Esta paz. Esta fome.
Desencontro.
Sempre o desencontro.

[Passei por aqui hoje porque tive saudades. "O livro da embriaguez" é esta voz que vive em mim desde 2006. Um voz corrosiva. Faz quatro anos que eu parti do inferno em Juquiá. Agora estou aqui e Deus não aparece. O meu diabo é silencioso. Continuo vivo. Um pouco mais atento].

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Sarajevo


O livro do suicídio


[Florbela Espanca]

Em dois de dezembro de 1930, Florbela encerra seu Diário do Último Ano com a seguinte frase: “… e não haver gestos novos nem palavras novas.” Às duas horas do dia 8 de dezembro – no dia do seu aniversário Florbela D’Alma da Conceição Espanca suicida-se em Matosinhos, ingerindo dois frascos de Veronal. Algumas décadas depois seus restos mortais são transportados para Vila Viçosa, “… a terra alentejana a que entranhadamente quero”.



[Virginia Woolf]


No dia 28 de Março de 1941, após ter um colapso nervoso Virginia Woolf suicidou-se. Ela vestiu um casaco, encheu seus bolsos com pedras e entrou no Rio Ouse, afogando-se. Seu corpo só foi encontrado no dia 18 de abril.

Em seu último bilhete para o marido, Leonardo Woolf, Virginia escreveu:

“Querido,

Tenho certeza de estar ficando louca novamente. Sinto que não conseguiremos passar por novos tempos difíceis. E não quero revivê-los. Começo a escutar vozes e não consigo me concentrar. Portanto, estou fazendo o que me parece ser o melhor a se fazer. Você me deu muitas possibilidades de ser feliz. Você esteve presente como nenhum outro. Não creio que duas pessoas possam ser felizes convivendo com esta doença terrível. Não posso mais lutar. Sei que estarei tirando um peso de suas costas, pois, sem mim, você poderá trabalhar. E você vai, eu sei. Você vê, não consigo sequer escrever. Nem ler. Enfim, o que quero dizer é que é a você que eu devo toda minha felicidade. Você foi bom para mim, como ninguém poderia ter sido. Eu queria dizer isto – todos sabem. Se alguém pudesse me salvar, este alguém seria você. Tudo se foi para mim mas o que ficará é a certeza da sua bondade, sem igual. Não posso atrapalhar sua vida. Não mais. Não acredito que duas pessoas poderiam ter sido tão felizes quanto nós fomos.”V.


[Mário de Sá Carneiro]

Depois de algum tempo passado na Quinta da Victória, voltou a Lisboa, onde conviveu com outros literatos nos cafés, alguns dos quais membros do grupo ligado à revista Orpheu, cujo primeiro número, saído em Abril de 1915 e imediatamente esgotado, provocou enorme escândalo no meio cultural português. No final do mesmo mês, publicou Céu em Fogo. Em Julho desse ano saiu o Orpheu 2 e, pouco depois, Sá-Carneiro regressou a Paris, de onde escreveu a Fernando Pessoa comunicando a decisão do pai de não subsidiar o número 3 da revista. Agravaram-se, por esta altura, as crises sentimentais e financeiras do poeta (já por várias vezes tinha escrito a Fernando Pessoa comunicando o seu suicídio). Sá-Carneiro suicidou-se, com vários frascos de estricnina, a 26 de Abril de 1916, num Hotel de Nice, suicídio esse descrito por José Araújo, que Mário Sá-Carneiro chamara para testemunhar a sua morte. Deixou a Fernando Pessoa a indicação de publicar a obra que dele houvesse, onde, quando e como melhor lhe parecesse.


[Maiakóvski]

A fase de depressão que atravessa é agravada por sucessivas afecções da garganta, particularmente penosas para quem procurava sempre falar em público, e cuja poesia está marcada pela oralidade. Termina o poema “A plenos pulmões”. Suicida-se com um tiro (14 de abril de 1930).


[Ana Cristina Cesar]


Ana Cristina Cesar começou a publicar poemas e textos de prosa poética na década de 1970 em coletâneas, revistas e jornais alternativos. Seus primeiros livros, “Cenas de Abril e Correspondência Completa”, foram lançados em edições independentes. As atividades de Ana Cristina não pararam: pesquisa literária, um mestrado em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), outra temporada na Inglaterra para um mestrado em tradução literária (na Universidade de Essex), em 1980, e a volta ao Rio, onde publicou “Luvas de Pelica”, escrito na Inglaterra. Em suas obras, Ana Cristina Cesar mantém uma fina linha entre o ficcional e o autobiográfico.

Cometeu suicídio aos trinta e um anos, atirando-se pela janela do apartamento dos pais, no décimo terceiro andar de um edifício da rua Tonelero.

sábado, 24 de abril de 2010

Frio e sono

Faz frio. Não muito. Hoje acordei às 14 horas, pois fiquei até tarde assisitindo uns filmes estranhos. Levantei-me, como de costume, desnorteado. Reclamei comigo mesmo o tempo perdido com o sono, como se isso mudasse alguma coisa. Não mudaria nada. O resto dos meus dias talvez seja uma briga contínua com o fato de dormir demasiadamente como um louco desvairado. E quem disse que os loucos dormem demais? (Segue).

sábado, 30 de janeiro de 2010

Uma entrevista com Rudinei Borges


* por Cristina Lima

Em 2009, o poeta e escritor paraense Rudinei Borges, que atualmente mora em São Paulo, publicou o seu primeiro livro de poesia, Chão de terra batida. Numa entrevista concedida via e-mail, Rudinei conta como a infância no interior da Amazônia influencia a sua criação poética. Acompanhe os principais momentos da entrevista.

Cristina Lima - Apresentação, poema que abre o seu primeiro livro, Chão de terra batida, inicia com o verso que diz “Eu nasci no mato, Joana”. Na parte final do livro em um texto que você nomeou de Autorretrato há outra vez esta afirmação, “sou um poeta do mato”. Por que esta fixação pelo mato? Qual o significado do mato ou da floresta em sua poesia?

Rudinei Borges - Não diria que há uma fixação pela imagem do mato. Mas, em verdade, há um itinerário a ser percorrido em meu primeiro livro e ele parte do tema da infância. Quando recordo os primeiros anos de minha vida, o que tenho guardado na memória são imagens da mata amazônica, da simplicidade do cotidiano, da figura materna e da imensidão das águas. Na Amazônia os rios são imensos. O mato talvez signifique o lugar primeiro. O que Barcherlad chama de poética do espaço. É onde nasci e de onde vim. Quando afirmo que sou um poeta do mato não estou delimitando o meu espaço, mas reconhecendo a minha própria origem. Tenho textos e poemas que evocam uma realidade absolutamente urbana, como a vida em uma cidade cosmopolita como São Paulo. No entanto, o meu chão primeiro, a minha manjedoura, é o interior do Pará. E eu quis que o meu primeiro livro fosse impregnado desta saudade do mato, da floresta. É quase como uma tentativa de fundir e confundir a infância com o local onde ela aconteceu.

C. L - Então, conte-nos sobre a cidade onde você nasceu.

R. B. - Eu nasci em Itaituba, cidade do oeste do Pará. Costumo enfatizar que fica às margens do Rio Tapajós, porque é um lugar muito bonito. Nasci na cidade, porém logo fui levado para o interior. Vivi na Rodovia Transamazônica e na Santarém-Cuiabá. A minha mãe foi caseira de sítio, cozinheira de fazenda. Itaituba foi e ainda é um município muito grande. Deve ter uns cem mil habitantes. Em geral, é possível conhecer boa parte das pessoas. Foi um lugar famoso pela exploração de ouro. Cresci ouvindo histórias de garimpeiros. Vi mulheres criando os filhos sozinhas, enquanto os maridos desejavam a riqueza no Alto Tapajós. Creio que o ouro não deixou riqueza nenhuma para a cidade. Só a poluição ocasionada pelo uso de mercúrio na extração daquele metal. Os meus pais são migrantes e foram para o Pará com a abertura da Tranzamazônica. Foram acompanhando os meus avós e lá se conheceram. O que acho interessante é que o migrante é sempre tomado de esperança, ele acredita que o lugar para onde vai será melhor. Nem sempre é assim. Alguns chamam a estrada inaugurada pelos militares, que até hoje não foi pavimentada, de Transamargura. Um apelido bem apropriado, eu acho. A vida não é fácil naquela parte do Brasil. Penso que o fato de a estrada não ser pavimentada propiciou que eu guardasse uma lembrança, um sentimento forte pelo barro. Na transamazônica há atoleiros gigantescos. Num dos meus versos eu escrevo: “no norte do Brasil há casa de barro em ruas de barro”. Outra vez tento fundir as imagens. As ruas de barro e as casas de barro são a mesma coisa. E termino com “um dia vi Deus empinando pipa”. O que percebo agora ao falar com você é que apesar de um provável cotidiano sofrível eu mantenho as mesmas esperanças do migrante. Tenho a impressão que em Chão de terra batida o cotidiano é cantado com certa ternura. De certa forma eu acredito no cotidiano. O cotidiano da pequena Itaituba e de todas as cidades muito me interessam.

C. L - Quando você veio para São Paulo?

R. B. - Eu mudei para São Paulo nos fins de janeiro de 2003. Tenho este hábito de usar a expressão “fins”. É uma quase certeza de que o fim nunca é um só. Há vários, então. Como deve haver inúmeros começos. Como comentei, eu cresci numa cidade pequena e cresci com o desejo de conhecer outras cidades. Por alguns anos, como muitos jovens, nutri um forte anseio de ir para lugares distantes. Queria viajar pelo mundo. Acho que tem algo haver com a leitura que fiz do diário de viagem de Ernesto Che Guevara ou com a vida de Rimbaud. Aliás, Rimbaud sempre me fascinou muito. Ele também veio do interior como eu. Porém, ainda não alcancei o mundo. O máximo que consegui chegar foi em São Paulo, que é um universo enigmático. Tenho vontade de deixar tudo e partir para uma viagem Brasil a dentro, Amazônia a dentro. Partir numa caravana como fez Mário de Andrade. Descer o inferno, como Drummond chamou a viagem de Mário. Um dia vi num livro uma foto de Mário de Andrade no porto velho de Santarém. Era uma fotografia antiga. Eu queria ser como aquele poeta que viajava atrás das raízes de seu país. Queria ser como o poeta que escreveu Macunaíma. Quando cheguei em São Paulo fui visitar o túmulo de Mário como um filho perdido que visita o pai distante. Senti alguma emoção. Engraçado, não escondo que sou guardador deste envolvimento familiar com as coisas. Lembro que certa vez peguei um caderno e fui perguntar para a vó o nome de todos os nossos parentes. Queria saber tudo. O nome de todos. Sou uma espécie de filho agarrado-desgarrado. Pareço distante, mas ao mesmo tempo ligado às minhas raízes. Preciso dizer que antes de vir para São Paulo, eu morei um ano em Santarém. Logo completei dezoito anos e terminei o Ensino Médio, em 2001, eu saí de casa. Em São Paulo me formei em Filosofia, comecei a lecionar e atualmente sou mestrando em Filosofia da Educação na Universidade de São Paulo – USP.

C. L. - Você gosta de São Paulo?

R. B. - Gosto de Sampa. Por vezes, sinto certa aflição. É como se eu sentisse a cidade encravada dentro de mim. Preciso olhar o mar e os rios. O que é mais difícil é que não há um rio como o Tapajós na cidade de São Paulo. Por um tempo, eu achava inadmissível uma cidade que não fosse às margens de um rio. As cidades que são referências para mim estão localizadas às margens de grandes rios, como o Amazonas. Falo de Itaituba, Altamira, Santarém e Belém. Falo de Alenquer, Oriximiná, Óbidos e Monte Alegre. São todas cidades paraenses. Eu só conheci o mar em 2003. Faz pouco tempo. O meu mar era o Amazonas. São Paulo é um mundo misterioso de casas, edifícios, pontes, avenidas e pessoas diferentes. Inusitadas. Você olha para um lado e para o outro e ainda não conhece nada. Lembro que o que mais me impressionou no centro foi o Viaduto do Chá. Até hoje não sei as razões. O Viaduto do Chá esconde uma espécie de magia que eu não entendo. Juro que não entendo. Quando quero me sentir bem e em paz ando por ali. Atravesso o viaduto, contemplo o Vale do Anhangabaú e o Teatro Municipal. É um sentimento sem explicação. Muitos falam e têm razão: tudo acontece em São Paulo. A vida cultural é o que mais me anima. É possível conhecer poetas e escritores. É possível ir às peças de teatro mais experimentais. Tenho uma ligação forte com o teatro. E quando vejo o encontro de teatro e poesia sinto grande alegria. Em Itaituba, eu atuava em performances com poemas na escola, na igreja e até nas praças. Em São Paulo fiz por um tempo o curso do Teatro Escola Macunaíma, mas depois tranquei por falta de dinheiro. O teatro é um sonho que não consigo alcançar. Ora fica perto e ora está distante. Diante destes percalços, prometi que vou escrever peças de teatro, que vou manter uma relação com o teatro de algum modo. Penso que eu escolhi o teatro, mas o teatro não me escolheu. Gosto de atores como Gero Camilo, Marat Descartes. Eles nem sabem que eu existo, mas gosto do trabalho deles. Certa noite, em 2008, vi uma peça em que atuava a atriz Juliana Galdino. Meu Deus, aquilo me levou a uma sensação do sublime que eu nunca havia experimentado. Voltando aos poetas e escritores, deixa-me confessar: desde a adolescência esperava conhecer os poetas Ferreira Gullar e Adélia Prado. Como também o meu mestre, Thiago de Mello, e o poeta Manoel de Barros. Conheci três deles. Faltou o Manoel de Barros. Sou da Amazônia, entretanto foi em São Paulo que pude conversar com o Thiago de Mello. Em São Paulo pude confirmar a sua real existência. Talvez eu leve pela vida toda o peso de não ter conhecido o poeta Manoel de Barros. Não tenho como ir ao estado onde ele mora. Nem tenho os contatos necessários para essa empreitada. Devo dizer também que em São Paulo a vida é cruel e difícil. As pessoas trabalham muito e talvez não vivam com a qualidade necessária. A educação e o transporte público, por exemplo, deixam muito a desejar. Conheci comunidades como Heliópolis. Lá a maior parte do que há para os jovens e as famílias é conquista ardorosa da comunidade e não necessariamente da autoridades ditas competentes. A violência me assusta. Já fui assaltado. A miséria nas ruas também é triste e vergonhosa. Isso é São Paulo.

C. L. - Você citou alguns poetas. Quais poetas mais o influenciam?

R. B. - As minhas influências são um paradoxo. Leio e estudo diferentes expressões da poesia e da prosa. Tudo o que é literatura me interessa, na verdade. No meu primeiro livro, Chão de terra batida, identifico algumas influências claras e até inegáveis. O meu modo de ser poeta em Chão de terra batida resulta da escolha por enxergar o cotidiano com paixão e esperança. O meu objetivo foi cantar e encontrar significado nas pequenas coisas da infância. Quis encher a minha infância e de todos os meninos da Amazônia de um significado universal. Os poemas têm caráter narrativo, por isso a maioria deles foi escrito em prosa. Acredito que essa é uma de minhas principais características nesse meu primeiro empreendimento literário. Essa escolha é o resultado do meu envolvimento principalmente com a poesia de Adélia Prado e Manoel de Barros. E penso que também da leitura de Manuel Bandeira e Mário Quintana. O livro sobre nada de Manoel de Barros me deixou enlouquecido. E Oráculo de maio de Adélia Prado me fez receber multas da biblioteca municipal da cidade onde nasci. Atualmente não consigo desgrudar de Libertinagem e Estrela da manhã de Bandeira. Ninguém consegue. Libertinagem é um clássico de todos os tempos da poesia brasileira. Eu vivo os meus dias convivendo com o porquinho-da-índia, com Tereza e Irene Preta. Fale-me de poema mais extraordinário que Vou-me embora pra Pasárgada? Eu recitava aquele poema para todo mundo. Agora, por exemplo, estou labutando com a poesia completa de Mario Quintana. Foi a leitura de uma antologia de Quintana que me fez decidir por publicar primeiro os poemas de Chão de terra batida. Penso que os poetas que citei têm algo em comum, como o lirismo, a simplicidade disfarçada e um jeito prosaico de escrever os versos. O que eles escrevem parece simples, mas logo numa outra leitura encontramos uma variedade de significados e sugestões. Nos últimos dias li alguns versos de Poemas dos Becos de Goiás e estórias mais de Cora Coralina. Causa fascinação versos como “vive dentro de mim uma cabocla velha de mau-olhado, acocorada ao pé do borralho, olhando para o fogo”. O que mais gostei foi do famoso Poema do milho e, em particular, quando em certa altura do poema, Cora escreve: “Em qualquer parte da terra um homem está plantando, recriando a vida. Recomeçando o mundo”. Quero beber da simplicidade grandiosa desses poetas.

C. L - E os outros poetas e escritores? De quem você gosta em particular?

R. B. - Passei a minha adolescência inteira lendo Drummond. E Drummond pesa nos ombros, porque é extraordinário. É muito difícil esquivar-se da influência do poeta mineiro. Tenho paixão pelo Drummond de Rosa do povo. Da mesma forma amo o Gullar do Poema sujo e o Thiago de Mello de Faz escuro mas eu canto. A poesia compadecida pela miséria humana me interessa. Escrevi um poema longo de caráter social. Ainda não o publiquei e nem sei quando o tornarei público. Chama-o provisoriamente de Carne hostil. Eu o escrevi em 2005. Não o concluí. Ele surgiu depois de dois anos morando em São Paulo, num período em que eu ia de ônibus para a faculdade. Saía cedo de casa. Ia do extremo da zona sul para o Ipiranga. A vida das pessoas indo para o trabalho foi o que me motivou. Retornei a labutar com o Carne hostil em 2009. Porém, eu o acho um tanto panfletário. Outros escritores causaram tempestades em minha busca literária. Posso citar T.S. Eliot, Federico García Lorca, Rainer Maria Rilke, Bukowski, Tagore, Tristan Corbière, Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa e Rimbaud. De todos estes que elenquei creio que os que mais leio são T.S. Eliot, Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro e Rilke. Não tenho nenhum receio em dizer que os meus poemas de cabeceira são A terra desolada de Eliot; Tabacaria e Guardador de rebanhos de Pessoa; Divã do Tamarit de García Lorca; Os primeiros poemas de Rilke; Dispersão de Mário de Sá. Também todo o livro Libertinagem de Bandeira. É evidente que são os meus poetas de agora. Outros vão chegar. Leio Folhas de relva de Walt Whitman aos pedaços. Aos pedaços também leio Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa, que é verdadeira poesia. Aos pedaços leio Assim falou Zaratustra de Niezsche e o teatro de Samuel Beckett. Este ano li alguns livros do poeta Roberto Piva. Não posso esquecer outros textos que estão sempre comigo como Chove nos campos de Cachoeira de Dalcídio Jurandir. A minha vida seria uma chatice sem essa gente toda. Também guardo algumas fotografias. Elas me ajudam a escrever.

C. L. - Você cita Dalcídio Jurandir na epígrafe de seu livro. Por que todo este carinho por esse escritor?

R. B. - Porque devo muito do que sou à leitura de Chove nos campos de Cachoeira e de outros romances de Dalcídio Jurandir. Se eu fosse para uma ilha deserta levaria esse livro. Talvez você não compreenda, mas Dalcídio conseguiu traduzir em seu primeiro romance muito da alma amazônica, da infância dos meninos da Amazônia. Não posso negar que sou ou fui uma espécie de Alfredo, o personagem principal de Chove nos campos de Cachoeira. Sempre com o desejo árduo de partir, de ir para além dos campos molhados. Dalcídio conta a história de famílias da vila de Cachoeira, que hoje é uma cidade da Ilha do Marajó. Acho que Dalcídio se quisesse poderia trocar o nome de Alfredo pela palavra liberdade. Teria o mesmo sentido. Eu li este livro com dezessete anos, numa viagem de barco para Belém. Foram três dias olhando as margens do rio Amazonas e lendo as páginas de Dalcídio. Aquilo me encantou de tal modo que não sei o que deu em mim. Foi a partir deste fato que me entendi como sujeito amazônico, como parte de uma gente, de uma região do Brasil. O que é a Amazônia? As pessoas não sabem. Não nos compreendem. Não nos conhecem. A Amazônia é a parte esquecida da família. E a literatura amazônica? Quem sabe o que se escreve ali? Dalcídio foi um dos maiores prosadores brasileiros do século XX e poucos críticos e estudiosos o conhecem. Fico com a triste sensação de que a literatura amazônica tende a ficar no ostracismo. Espero que isto mude com o advento da internet, com os avanços tecnológicos dos meios de comunicação. A literatura é a alma de um povo. É um dos modos mais significativos para expressar o que um povo é. Eu creio nisso.

C. L. - O escritor paraense Edilson Pantoja, em um comentário sobre o seu livro Chão de terra batida, afirma que as principais referências de seus poemas são femininas, como a mãe e a avó. Ele também afirma que essas referências femininas parecem constituir figura da própria Amazônia. Como você recebeu este comentário?

R. B. - O Edilson Pantoja é da nova geração de escritores paraenses. Faz pouco tempo ele lançou o romance Albergue Noturno. Não o conheço pessoalmente. Mantenho contato com Edilson através da internet. Pantoja, decerto, fez uma leitura atenta de meu texto. Ele notou algo que tomei consciência após escrever a maioria dos poemas de meu livro. Isto que ele chama de referência feminina. Essa referência se deve em grande parte à minha própria história. Fui criado por minha mãe, pois o meu pai se desgarrou de nós muito cedo. Cresci sem pai e a figura de minha mãe tem um sentido todo especial em minha criação. Minha mãe foi e é para mim um grande exemplo coragem e persistência. Ela é destas mulheres brasileiras tomadas de uma força inacreditável mesmo nos momentos mais difíceis. Minha mãe trabalhou duramente para que eu pudesse estudar. Ela sempre me incentivou a escrever, sempre gostou de me ouvir recitar. Na verdade, a minha mãe cresceu ouvindo poemas de cordel. Era comum em Ananás, Tocantins, cidade onde ela nasceu, a leitura de romances de cordel. Talvez por isso ela admirasse tanto o filho que se dizia poeta. Mas nunca escrevi poemas de cordel. Lembro de certa tarde quando a minha mãe chegou do trabalho com um calhamaço sobre o romantismo. Devorei aquilo no mesmo dia. Admirava os poemas de Fagundes Varela para o filho morto. Acho que daí vem esta referência. A própria floresta amazônica lembra um grande útero onde estão presentes várias formas de vida.

C. L. – A religiosidade é outro tema frequente em seu livro. Em poemas como Auto do Mato, você apresenta a figura de Deus com certo humanismo. Há uma tentativa de humanizar o divino em sua poesia? Outra questão interessante é da referência aos santos, comum na cultura popular brasileira.

R. B. – Como já comentei, eu nasci no interior do Pará, numa região de muitos migrantes vindos do nordeste e sul do Brasil. Todos eles levaram para as fazendas e sítios, às margens da rodovia Transamazônica, elementos típicos de sua religiosidade, fé e crenças. Mas também as cidades ribeirinhas do Tapajós e do Amazonas são marcadamente caracterizadas pelos festejos de seus santos padroeiros, por procissões belíssimas. É o que acontece com o Círio de Nazaré em Belém. Uma vez participei do Círio de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Santarém. Eu fiquei impressionado com as ruas enfeitadas e com a quantidade de pessoas caminhando numa manhã ensolarada. E não vou esquecer por nada neste mundo das procissões de Sant’Ana, padroeira da cidade onde nasci. A procissão acontece em julho. Faz alguns anos que não participo. Em verdade, eu cresci meio às pequenas comunidades eclesiais de base da Amazônia que surgiram na década de 1970. Cresci meio às rezas das capelinhas, meios às novenas dos santos. Por isso, quando retomo o tema da infância em Chão de terra batida, retomo também a religiosidade característica da região de onde vim. Que não é uma religiosidade institucional. Acredito que o modo como o povo vive a sua fé transcende às instituições. Deste modo, quando penso a figura de Deus eu o apresento como um amigo de infância, como um menino. Não tenho pretensões de adentrar questões teológicas ou filosóficas. O meu desejo foi reaver a minha maneira contraditória de significar a vida e a fé. Acho que é isso.

C. L. - Você citou que mantêm contato com outros escritores pela internet. Qual a relação de um poeta que se denomina do mato com o este meio de comunicação? Como avalia você avalia os blogs e sites de literatura?

R. B. - Utilizo o computador e a internet com freqüência. Nos fins de 2007 criei um blog, depois o abandonei. Agora disponibilizo alguns textos num blog chamado A rua sétima. A internet é um instrumento muito importante a serviço dos escritores. Assim, os novos poetas podem divulgar poemas e outras criações. Publicar um livro no Brasil, principalmente de poesia, é uma batalha homérica. E nem todo mundo tem condições de arcar com os custos de uma publicação independente. Pela internet tenho conquistado novos leitores e o que escrevo pode chegar a todas as regiões do Brasil. Os sites e portais que publicam textos de novos escritores são relevantes. Posso citar o site Jornal de Poesia, o Recanto das Letras e o Portal Literal. Lembro que os primeiros poemas que li de Lêdo Ivo, por exemplo, eu os encontrei no Jornal de Poesia. Depois passei para os livros. Já li bons textos na rede. Outros nem tanto. O leitor precisar ficar atento. Precisa ser seletivo. Talvez o mal da internet seja o imediatismo. Muitos esquecem a lição de João Cabral, da necessidade de lutar com as palavras e de que a boa poesia e a boa prosa resultam de um trabalho constante de seus autores. Não existe mágica. A literatura de qualidade não cai do céu. Isso não implica que devemos abandonar a sensibilidade. Encontro muitos desabafos em blogs e sites, mas precisamos ir além disso. Uma obra literária não pode ser sustentada somente com comentários sobre a festa do último domingo. É preciso muito mais. Com o computador adquiri novos hábitos. Antes escrevia só em blocos de papel. Agora produzo no próprio computador. Mas quando saio às ruas ou ando de ônibus sempre estou com um pequeno caderno para anotações. Por vezes, nasce de repente uma frase ou um verso. Também há um movimento interessante que é o da poesia virtual, ligada à animação, ao web desing. Preciso experimentar isso.

C. L. – Você termina o poema Apresentação com uma síntese de seu trabalho como poeta. Você escreveu: “O verso é meu ofício”. Como é o seu processo de criação?

R. B. – O meu processo de criação é vagaroso, porém constante. Eu escrevo com certa voracidade, mas misturo os projetos. Não sou muito organizado. Estou tentando priorizar o que vou escrever. Como inicio vários textos num mesmo período, demoro a conclui-los. Já iniciei romances, novelas e contos. E não levei nenhum projeto adiante. Perco com esse processo. Sem esquecer as idéias que surgem na rua ou no meio da noite e não tenho onde anotá-las. Elas também se perdem. Já escrevi vários poemas que estão longe de uma qualidade desejável. Nem tudo que escrevemos deve ser publicado. Sou exigente. Mas escrevo com leveza. Acredito que estou começando a me entender como escritor, como poeta. Aos poucos estou deixando nascer um certo Rudinei Borges, que é a soma de inúmeros livros lidos, a soma de muitas vozes e histórias ouvidas nas ruas. No entanto, o meu maior instrumento de trabalho é a minha memória. Por vezes, tenho a impressão que há uma sina da qual não poderei me livrar, a sina de memorialista. Eu estou impregnado das imagens do passado. Estou impregnado de minha própria infância e dos personagens daquela época. Sim, o verso é meu ofício. A memória é minha sina. Não quero perder isso.

* Cristina Lima é estudante do Curso de Letras da Universidade de São Paulo, USP.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Chão de terra batida - lançamento no dia 7 de novembro 2009




CHÃO DE TERRA BATIDA

Rudinei Borges

Lançamento dia 7 de novembro, às 19h.

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All Print Editora e Gráfica Ltda.
Espaço Cultural Antonio Adolpho
Rua Ibituruna, 550 – Jd. Saúde – São Paulo – SP
(próx. Estação Saúde do Metrô)
Fone: (11) 2478-3413

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O CHÃO DE RUDINEI BORGES
por Edner Morelli


A literatura de Rudinei Borges impressiona pela sua simplicidade, comprovando que a boa obra literária nem sempre precisa se apoiar num hermetismo estético que, muitas vezes, não diz nada. Por meio de uma prosa memorialista, algo que transita entre o regional e o universal, o autor, com invejável tom poético, apresenta-nos uma revisitação de seu espaço primeiro, no caso, o interior do Pará. Ao optar pela primeira pessoa, a obra adquire certa atmosfera autobiográfica, porém, nunca se esquecendo da possibilidade de representação que as imagens literárias nos proporcionam.

O texto de Rudinei, materializado em seu primeiro livro Chão de terra batida, beira o relato pessoal, misto de crônica e conto fragmentado, com perdão da redundância. Obviamente, por trás dessa economia de meios de linguagem, os textos desse livro guardam uma potencialidade infindável de sugestões poéticas, como verificamos no texto abaixo, que vai do tom impressionista-cotidiano à surpreendente reflexão existencial-filosófica:

Altar

Mãe rezava o rosário inteiro
antes de dormir.
E eu baixinho repetia
as palavras da mãe:
amar significa olhar para as coisas
sem sentir saudades delas.

Rudinei cria, ou melhor, re-cria sua própria mitologia, ao recuperar as figuras familiares mais íntimas, os espaços mais longínquos de sua infância-raiz, apontando para um movimento curioso de representação, que abrange o lado interior e exterior do poeta. Como uma fotografia em prosa, Rudinei nos oferece uma visita ao seu mundo particular, pois só ele esteve in locus nessas reminiscências, que esse livro possui a pretensão literária de eternizá-las.

*

REPERCUSSÃO

Chão de terra batida é um microcosmo onde o leitor caminha pelas terras e sente os cheiros e os sabores da infância, as brincadeiras de criança, as travessuras de menino levado, aquele tempo que não morre e que nos acompanha durante toda a vida e nos dá conforto quando há solidão”. (Felipe Garcia de Medeiros)

Chão de terra batida é um livro mítico. Ele remonta ao barro primitivo para tocar no mistério da gênese. Não da Phýsys enquanto mundo objetivo, mas do Cosmos subjetivo da poesia de Rudinei Borges. Narrativa em que as principais referências são femininas: a mãe, a vó, a Amazônia, grande ventre do qual aquelas parecem constituir figura. O livro conta, em instantâneos plenos de beleza e encanto, a conformação da poesia e do poetar na alma do menino. E, não obstante, na subjetividade do processo, uma viva comunicação se estabelece. O leitor se vê no poeta: Mistério da poesia!” (Edilson Pantoja)

“Os poemas de Chão de terra batida possuem uma propriedade peculiar: conseguem nos impregnar da mesma nostalgia de seu autor, como se odores, sabores e outras sensações que percorrem o livro se integrassem às lembranças de cada leitor. Epifanias que eclodem de cenas cotidianas revelam um universo repleto de singelas riquezas, para o qual somos transportados, por força do claro estilo de Rudinei Borges. A propósito deste estilo, o rigor de quem procura a palavra exata e a simplicidade derivada da opção por prescindir de efeitos vazios se encontram em medidas precisas na escrita de Rudinei, o que nos faz crer estarmos diante de um poeta destinado a se consolidar entre os melhores”. (Carlos Alberto Rodrigues Pereira)

Chão de terra batida é um mergulho nas águas densas das sensações, as mesmas águas em que navegam as pequenas embarcações que os olhos do menino avistavam do cais. Entre ruas e personagens, Rudinei Borges se debruça sobre o passado, resgata impressões do cotidiano e irrompe o universo cultural de sua terra, a Amazônia. O que mais agrada em Chão de terra batida é a capacidade do autor em olhar o passado sem distanciar-se do presente e correlatamente projetar o futuro. A maneira como Rudinei interage com a temporalidade torna este livro imprescindível”. (Sidnei Ferreira de Vares)

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Estou na Amazônia

Estou na Amazônia, mas precisamente em Itaituba, no interior do interior do Pará. Longe de Belém, de Manaus e de Cuiabá. Muito longe de São Paulo, onde moro. A vinda para cá deixou descansar Ernesto López e, agora, o meu poeta-menino Alfredo Dias arde dentro de mim com o seu amor pelo barro, pelos becos e pelo cais. Penso que apracerão novos poemas cheios de saudades.

Abraço a todos.

Rudinei Borges

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Breviário - Para Jeovane camargo

São Paulo, 13 de novembro 2008
Meu caro Jeovane,
Há uma música do Renato Russo, em que ele afirma que alguns falam muito por não ter nada a dizer. Talvez eu tenha poética e literariamente algo a dizer. E vou dizer. Não tardará uma publicação de O livro da Embriaguez, o que não significa nada, mas é uma documentção, uma chave que pode abrir portas.
Uma amiga minha de infância, católica até a alma, escreveu horrores sobre um poema meu em que eu repito inúmeras vezes "que venha a cruz". Disse que não sou o mesmo.Em verdade, O Livro da Embriaguez é um texto niilista. Está lá Nietzsche e todos que pensaram a idéia de absurdo, como Kafka, Sartre, Camus e Beckett. Está lá Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa, Bukowski, Whitman e Lorca.
Fico com certo receio de que seja o meu primeiro livro de poesia, porque talvez se feche as portas das universidades religiosas, por exemplo, ou me olhem como um ateuzinho de merda. Mas nem sou ateu. Sou panteísta. O certo é o meu livro não é em nada católico.
Não tenho obrigação de ficar para a história, mas a convicção de que é possível amadurecer a cada novo texto.
Grande abraço,
Rudinei Borges

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

O diário de Judas

Às três da tarde sai de casa, segurando dentro do corpo uma fome canina. Eu precisava comer qualquer coisa antes que o mau humor deixasse o plano das idéias e se erguesse concretamente para além de mim, como se fosse uma entidade real: um homem ou uma mulher com as mãos trêmulas e a boca espumando. O certo é que o mau humor toma conta de mim quando sinto fome. Porque a fome é como o tédio. Eu estava na rua e levava os meus músculos e os meus ossos, revestidos duma pele morena, para a padaria que fica na esquina da Avenida Brigadeiro Jordão com a Agostinho Gomes (nomes de homens que não sei quem foram, nem o que fizeram, mas eles permeiam e atormentam minha memória e dão fome. Uma tarde, como a de hoje, deitei-me no sofá da sala e num cochilo vi-me diante desse Sr. Brigadeiro Jordão. Porém, ele não era um homem. Era a cópia fiel do espectro da morte (como num filme de Bergman) e queria jogar xadrez comigo. Não. Eu não sei jogar xadrez. Sou um animal inapto aos jogos. Sai correndo como quem corre de um cão raivoso. E acordei suado. Foi o meu único sonho com este senhor.) Mas antes que eu chegasse à padaria aconteceu-me algo inesperado e terno e idiota: o vento brincava sobre as calçadas e sobre as calçadas trouxe para os meu pés um folheto amarelado e velho,desses que as igrejas distribuem de porta em porta. Havia uma pergunta grande, centralizada e em negrito: gostaria de conhecer a verdade? Nesse momento as palavras soltaram em qualquer parte de minha mente onde elas moram (que não é na esquina da Avenida Brigadeiro Jordão com a Agostinho Gomes): Sim. Não. Não. Sim. Eu quero conhecer a verdade. Eu não quero conhecer a verdade. Assim, num desapego súbito pus os meus pés sobre as folhas e continuei andando. Um folheto não poderia me dizer o que, de fato, é a verdade. E se dissesse de que adiantaria se tenho contas para pagar. Mas próximo à padaria retornei. Algo naquele tom amarelado do folheto resgatava um quê de saudades. Pus, então, entre as mãos aquele folheto e o li em parte, enquanto esperava algo para comer. (Uma tarde, como a de hoje, entrei numa biblioteca convicto de que encontraria o livro mais antigo que houvesse ali. Depois de horas numa caçada épica, encontrei um caderno grande, onde estavam escritas as atas de uma antiga associação de moradores da cidade. A primeira ata datava de mais de cem anos. A maioria das laudas de tom amarelado, como aquele folheto, estava em branco. Assim, como quem quisesse guardar algo antigo, arranquei duas laudas e coloquei no bolso. Era quase um orgulho possuir uma velharia mínima como aquela. Fiquei com elas por anos. E, agora, não recordo onde as deixei. Este folheto também se perderá entre as minhas coisas. Se perderá, decerto, sem nenhum significado, porque talvez eu nunca volte a ler o que há escrito abaixo da indagação sobre conhecer a verdade. E talvez eu nunca conheça o que é a verdade.

Um rapaz de estatura média, branco e magro, vestido de camisa e calça brancas e um avental cor de vinho tinto (como se estivesse intimidado diante dos meus músculos e dos meus ossos, revestidos duma pele morena) trouxe-me um prato com comida e um copo com gelo e refrigerante. Depois os talheres e uma ficha (de número 130) onde estavam anotados os meus gastos. 130 anos talvez seja a idade da lauda que furtei do caderno grande na biblioteca. 130 talvez seja o meu número da sorte ou o número da casa de alguém que vou conhecer e amar por toda a vida. Ou talvez seja somente o número da ficha. Peguei os talheres e comecei a comer célere como um automóvel. Quando vi que me olhavam decidi comer devagar. Mas tudo naquela padaria parecia-me um incômodo infindo e se misturava em minha mente como as palavras. Dois homens sentados no balcão comiam hambúrguer com a boca aberta. Um hambúrguer gigante numa fotografia na parede me fazia fechar os olhos. Um papel amassado perdia-se sob uma das mesas em meio às embalagens de chicletes. A cada segundo uma nova pessoa chegava e uma nova pessoa saia. O rapaz de estatura média, branco e magro, vestido de camisa e calça brancas e um avental cor de vinho tinto (como se estivesse intimidado diante dos meus músculos e dos meus ossos, revestidos duma pele morena) continuava levando pratos com comida e copos com gelo e refrigerante (às vezes suco) para as mesas. E depois os talheres e uma ficha (que eram de números diferentes de 130). Um cheiro forte de pão vinha de dentro da cozinha. Os garçons suavam e suavam também as canetas que eles carregavam nas mãos para anotar os gastos dos clientes nas fichas. Um garçom de longe acenou para mim. Eu gentilmente sorri. Não sabia que me conheciam. Mostrei a ficha. Já estou com a ficha, eu disse. O número é centro e trinta, murmurei. Três rapazes e um homem velho comiam na mesa à minha frente. Um deles balança a perna um tanto desconfortável. Do outro lado de minha mesa uma senhora idosa vestida de azul arrastava-se com uma muleta para ir embora. Um homem estranho sentou-se à minha frente. Ele estava vestido todo de preto. Os braços estavam cruzados. Ele olhava para a rua como se contasse as pessoas que passavam na Avenida Brigadeiro Jordão. Ele usava um óculo preto. Um garçom trouxe um pão para ele. Ele comia célere como um automóvel, mas como viu que eu olhava decidiu comer devagar. O céu e o vento anunciavam que logo iria chover, enquanto um dos garçons segurava uma cesta com mostarda e ketchup. Ele colocou a cesta dentro de um armário que ficava próximo às mesas dos clientes. O homem vestido todo de preto levantou e foi embora. Por um instante só havia eu naquela parte da padaria. E eu olhava para o nada, para os potes de açúcar enfileirados num balcão. Outro garçom me cumprimenta. Deixo o semblante entregar-se num sorriso largo. Já estou com a ficha, eu disse. O número é centro e trinta (dessa vez não murmurei). Um pombo sujo caminha sobre a calçada onde encontrei o folheto. Duas mulheres andam apressadas na rua. Elas entram na padaria. Elas seguem uma fila para comprar algum pão ou doce. Dois velhos estão sentados próximo ao telefone público do outro lado da esquina. E riem e conversam e olham para mim. Eu não rio e não digo nada. Não tinha mais fome e o mau humor não poderia me dominar. Estava farto. Bocejei.
Rudinei Borges

Agostina Musson


Estelle Musson - Degas


Agostina Segatori - Van Gogh

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Agostina Musson: junção dos nomes Agostina Segatori (italiana que vivia em Paris. Van Gogh a conheceu em janeiro de 1887, ano em que pintou A taliana) e Estelle Musson (prima e, posteriormente, cunhada de Degas. Ela foi retratada por Degas em Mulher com vaso).

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Carta de Agostina Musson

21 de outubro 2008
Li o seu poema, Embriaguez. Fiquei indignada pelo tom obscuro de seu texto e pelas icógnitas existentes. Peço que reformule e o proibo de incluir nele o nome de minha querida e santa madrinha, Amélia Lages. Ela ficaria muito triste ao ver como você se encontra, tentando se esconder de sua própria verdade, para não dizer realidade. Seja digno de tudo, principalmente das pessoas que um dia o admiraram.
Agostina Musson

sexta-feira, 24 de outubro de 2008





Ele estava sempre conosco e era tão alegre, tão cheio de vida. Não conhecíamos ninguém igual a ele. Ninguém mesmo. Mas depois de um tempo ele foi para longe. Não sei exatamente onde, mas sei que era distante. E não sei o que foi feito dele, não soubemos mais nada a seu respeito. Nada mesmo. Uns dizem que ele nos abandonou, que cansou de tudo isto aqui. Mas quase todos na aldeia acreditam que ele morreu, porque sabem que se ele estivesse vivo não suportaria ficar distante de todos aqui. Não, ele não agüentaria, porque nos amava de uma maneira estranha, diferente. Ele nos amava de um modo que sabíamos que verdadeiramente nos amava. E não podíamos duvidar disso. Ninguém ousava duvidar disso. Por isso, cremos que ele morreu. E por ele ter morrido sofremos e choramos, porque estávamos longe quando ele mais precisou e sequer podemos nos despedir. Por que o senhor vem, agora, relembrar esta história? Decerto, o senhor não sabe o quanto a saudade que sentimos nos faz sofrer. O senhor nem pode imaginar. Por que o senhor nos envolve com suas dúvidas? Eu já o havia esquecido. Porque esquecê-lo foi o melhor remédio que encontrei para não mais sofrer com a notícia de sua morte, posto que se até ele morreu... o que acontecerá conosco? Agora, o senhor com seu atrevimento nos faz recordar o quanto sofremos com o que aconteceu. A lembrança dele é dor e ninguém deseja dor. E sentimos dor quando o recordamos, porque não o amamos com a mesma intensidade que ele nos amou. E todos sabem e todos se ressentem. E ele se tornou para nós um ressentimento. E por sua causa sentimos outra vez o mesmo ressentimento. O senhor não tem esse direito. O senhor fala dele como se soubesse que ele está vivo, como se tivesse tanta certeza. Mas o senhor não tem nenhuma. O senhor apenas brinca com a nossa dor. Sei muito bem que o que sofremos com essa história é motivo para seu divertimento. O senhor deveria pensar duas vezes antes de nos perguntar sobre Deus, antes de afirmar qualquer coisa sobre ele. Nós o conhecíamos muito. Não queira nos dizer o que sabe de Deus. Nós sabemos melhor que ninguém que ele não nos abandonaria, não nos deixaria a esmo. Deus jamais faria isso. Sinto-me incomodada até em pensar essa possibilidade. Como o senhor tem coragem? Espero que isto não chegue aos ouvidos de nossos avós. Eles ficariam ofendidos. Extremamente ofendidos até. E ofendê-los é como se o senhor e seu ajudante ofendesse toda nossa aldeia. Não ouse.

Aperto, esboço de um romance





O romance em primeira pessoa conta as alucinações e devaneios de um homem que mora sozinho em um apartamento. Ele cola catálogos na parede e observa as pessoas pela janela; inventa histórias para essas pessoas, conversa com seus personagens e com personagens de outros romances, como os de Kafka; conversará com Gecor Samsa de “A metamorfose”, com o jejuador do conto “Artista de fome”. Também terá conversas com Eutanázio, personagem de Dalcídio Jurandir no romance "Chove nos campos de Cachoeira". Os três são homens doentes e ele cuidará deles. Tratará de suas doenças. Todos os personagens com quem conversa estão próximos da morte. É um romance, de certo modo, sobre a morte e o fardo de existir.

Este homem não tem nome. Ninguém sabe quem ele é, sua biografia. O romance é uma narrativa sempre movimentada. No fim ele estará cansado do aperto do apartamento, do aperto existencial e verá as paredes o engolirem. Os livros, os catálogos que ele coleciona o engolirão.

O homem moderno vive em um aperto, a vida é um aperto.

(São Paulo, 20 de fevereiro 2007. Sentado de frente de uma janela aberta para a rua Cipriano Barata, Ipiranga. Estava sozinho e olhava os pedreiros reformando uma casa).



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O disco movimentando-se. O disco e a voz do poeta movimentando-se no gramofone. Meu Deus, o gramofone é velho e sou tão jovem aqui sozinho. Por Deus, tão velho, como o gramofone de um médico, sento-me sozinho no sofá da sala. E a voz do poeta sonora e triste quase some. Não, não sou eu que estou surdo. É a voz do poeta que é fraca. O poeta é fraco, é um homem franzino, desses que não se dá um pedaço de pão velho. Mas a poesia dele é grande. E ele invade a minha sala, senta-se sozinho comigo no meu sofá. Não é a voz do disco no gramofone que fala, é o poeta que veio, nesta tarde, recitar para mim os seus poemas. Mas o poeta é velho. Meus Deus, ele até rir. Mas ele é triste. O poeta é triste. E o que menos quero é a tristeza, porque já a tenho suficientemente. E o disco movimenta-se, a voz do poeta sentado movimenta-se com os homens fora da janela derrubando a parede de uma casa velha. Vão construir uma casa nova, uma vida nova. O pedreiro olha uma mulher que passa e rir. O pedreiro rir. Meu Deus, o pedreiro rir. E o disco no gramofone pára, os automóveis param e todos, agora, ouvem a voz franzina do poeta franzino, recitando pessoalmente um poema franzino. E olham todos para a minha janela e me escondo, não quero ser visto. Não quero que saibam quem mora no andar de cima da casa mil nove centos e catorze. Não quero, não podem me ver. Que vejam o poeta, mas ao não a mim. Que ouçam o poeta, pois sou mudo, pois sou invisível, pois sou triste. E as ruas fazem silêncio, os gritos findam e todos querem ouvir aquela voz franzina recitando um poema sobre o mundo. Aquela voz que é minha, que veio para mim, para compartilhar a minha velhice e a minha tristeza. Mas não sou triste, sou apenas um homem sozinho. E a minha casa está cheia. E cheia a minha casa é solitária. E cheio sou distante. Desligo o gramofone, guardo o disco. Não quero aquele poeta aqui. Perdoem-me, mas tenho de fechar a janela. Não quero que vejam nada desta casa. Deixem o poeta recitar apenas para mim os seus poemas. O poeta é meu. Não posso dividí-lo. A mulher voltou-se para o pedreiro e, agora, a mulher beija o pedreiro. A mulher ama o pedreiro, a mulher terá muitos filhos com ele. A mulher será feliz. Eu sei que eles serão felizes. Não me proíbam de dizer que eles serão felizes e que um filho deles será um poeta franzino, de voz franzina e será meu amigo (meu grande amigo) e, por vezes, entrará na sala de minha casa, sentará no sofá e recitará para mim poemas sobre o mundo. Sim, é o filho do pedreiro e da mulher que passa na rua que, neste instante, recita para mim um poema e faz crê que posso rir e faz rir os meus enfermos. O menino cresceu, o menino cresceu e não quis ser pedreiro como o pai. O menino é poeta e é triste e é sozinho. O menino mora sozinho no andar de cima de uma casa, o menino olha por horas sem fim as pessoas passando na rua. O menino não tem mulher, não tem filhos, não tem amigos. O menino mora sozinho. O menino é sozinho e por isso veio à minha casa recitar um poema para mim. Um poema sobre o mundo. Um poema grande como o mundo. E as pessoas querem escutá-lo, mesmo que ele seja quase mudo, inexpressivo. O pedreiro me convidou para o casamento, mas não quis ir, não posso ir. O que vou fazer em um casamento. Não gosto de casamentos. Casamento é a única coisa que me faz rir. Não posso rir do pedreiro. Seria cruel. E não gosto de ser cruel.

Hoje, a mulher passou na rua e de novo o pedreiro olhou para ela. E riu. Ela olhou para ele. Ela riu. O pedreiro trouxe uma flor franzina, vermelha como a tarde. Mas a tarde não é vermelha. O pedreiro deu a flor para a mulher e ela foi embora. A mulher veio a minha casa.Como? Não posso, eu não posso recebê-la. Não conheço esta mulher. Desculpe-me a ousadia, mas somente o senhor pode dizer o que realmente devo fazer. Não faria nada sozinha, não saberia. Não finja que não me conhece. O senhor me conhece mais que eu mesma. O senhor sabe que sou uma jovem viúva e há anos procuro livrá-me desde véu de penúria, deste luto. E que não agüento mais suportar o espectro do meu falecido marido sobre os meus ombros. Que as pessoas não sabem que sou viúva isto é certo. Mas que a viuvez me distancia das pessoas isto é mais certo ainda. Quero somente _ e o senhor entenderá, porque o senhor é o homem mais inteligente que conheço_, reivindicar o direito de ser feliz. Não que o senhor tenha me negado isso, mas que o senhor anda demasiadamente ocupado e não tem lembrado do meu caso. Há anos tenho tentado fazer com que o senhor se lembre de mim. Há um tempo descobri onde o senhor mora, mas não ousei vir a sua casa, sei que o senhor não me receberia, como não recebe ninguém há anos, somente os seus enfermos. Sei que o senhor é um homem generoso. Falam nas ruas que o senhor tem amado Gegor, que o senhor tem tratado da doença deste pobre homem como um pai. Tenho passado na sua rua há meses, mas somente quando o pedreiro olhou para mim o senhor percebeu. Recorde-se, sou a viúva de um dos Buendía. O seu esquecimento tem me condenado ao sofrimento e a solidão. Permita-me casar com aquele jovem pedreiro, permita-me amá-lo e ter muitos filhos com ele. Não reivindicarei mais nada; peço, que após tanto sofrimento, o senhor me recompense com um tanto de paz. Nada mais do que o que eu mereça. Apenas o necessário. Alguns dizem que o senhor tem feito justiça, mas sei que o senhor não gosta do termo justiceiro. Contudo, sabemos o que o senhor pode fazer, então faça algo por mim. O meu pedido é reles, menor que de outrem. Não peço riquezas, nem prestígios. Não peço grandezas. Peço somente para viver, por um tempo que seja, este amor. Sim, que o senhor depois resolva finalizar a minha existência ou a de meu amado, mas antes que isto aconteça, permita-me primeiro experimentar, por um instante, o amor deste homem. Que o senhor é um homem amargurado todos sabem, mas não temos a obrigação de sofrer porque o senhor sofre. Ninguém diz isto ao senhor, mas tomei a liberdade de dizer: o senhor tem me feito sofrer com suas neuroses e esquecimentos. Que o senhor é apático, um escritor fracassado, que nenhuma mulher olha para o senhor, que a sua vida é colar catálogos nas paredes do seu apartamento... isto todos sabem. Que temos com isto? Não iria dizer, mas, agora, sinto que devo dizer a verdade: não sei de outra pessoa que tenha nos feito sofrer tanto. Que o senhor prefira a escuridão desta sala... estes móveis empoeirados... mas deixe-me ser amada por aquele pedreiro. Deixe-me ser acariciada por suas mãos, deixe-me fazer sexo com ele. Deixe que ele construa uma casa para mim e nossos filhos. O senhor não tem o direito de impedir isto. Não, não tem.

Texto experimental




Aviso: Não pensem que eu tenha esperança de que alguém lerará todo o texto. O propósito aqui é muito mais documentar o experimento que pode ser ou não usado no "Livro da Embriaguez".


... não não não (Pouco sei do que dizem. Eu espero. Mas creio nos que falam de amor com esperança. Eu amo. Mesmo sendo o amor uma construção vaga. Eu amo. À tarde eu sempre pedia esperança aos homens. Esperem! Esperem! Esperem! Ele apenas dorme. Eu gosto dos que dormem. Mas tenho medo dos que dormem demais. Ele haverá de acordar. Vocês não podem ir antes que ele acorde com seu humor, com seu riso. Gosto de quando ele dá longas gargalhadas e conta histórias de festas antigas, em que as mulheres usavam máscaras. Fiquem, por favor. Talvez ele acorde inspirado e recite para nós um de seus poemas. Ele tem poemas de beleza infinda. Afinal, ele é... Esqueçam! Há algum tempo atrás, logo quando vim ajudá-lo na biblioteca, ele se sentou na escadinha que vai para o quintal e ficou por horas recitando poemas que ninguém por aqui conhecia. Era de um livro antigo. Foi numa tardinha de outono. Uma tardinha ensolarada, aliás as tardes por aqui são sempre ensolaradas, até no inverno. Talvez por isso ele vive repetindo que o sol mora aqui, em nossa aldeia. O fato é que ele ficou por horas olhando para uma fonte que havia no quintal e nos chamou para sentar com ele. Não pensei que ele fosse deixar seus afazeres para sentar-se conosco. Imaginava que ele era demasiadamente ocupado para o ócio. Mas ele amava o ócio. Assim, tinha tempo para todos. Hoje, pergunto-me com uma certa dor (não sei se dor é a palavra certa): por que ele ficou aquela tarde inteira recitando versos que tampouco sabíamos o significado? Tudo o que ele nos dizia era tão próximo do que é a música. Mas que é a música? ... Não não não. Não me perguntem! Eu não sei. Depois ele nos trouxe chá. Ele adorava chá. Mesmo no calor ele adorava chá. Não entendíamos nada, nem tínhamos razões para entender. Afinal, ele é... Esqueçam! Peço somente que esperem. Talvez um pouco de chá vai acalmá-los. Eu vou buscar. Aqui lemos os livros sempre com uma xícara de chá sobre a mesa. Não estranhem este nosso gosto desajeitado. É o nosso costume.




Tenho nojo das xícaras. Meu Deus, ali o que tínhamos? Aquelas xícaras foram compradas com o dinheiro que ele nos enviou, mas este tal dinheiro nunca chegou a nossas mãos. Como posso lembrar aqueles ladrões? Talvez as crianças nunca vão compreender o que ocorre com os adultos. O chá sempre foi servido numa garrafa marrom. Queimava a boca. Como tudo naqueles dias queimava a boca e o resto do corpo. Aquele chá, aquelas xícaras deixaram feridas enormes. E tenho levado pela vida inteira o gosto amargo desses chás. Por Deus, odeio chá! Não venham com considerações absurdas. As moças da Formosa não vão entender. Deixe apenas a saliva escorrer sobre minhas costas. Quero sentir a saliva quente queimar a minha pele, a minha boca. Não venha. Aquela velha miserável. E nem tenho argumentos para odiá-la. É só uma lembrança. Agora, reflito. E misturo um pouco de água e sexo. Uma vontade imensa de sentir prazer sempre. Um tanto de tristeza com sono e vontade de ir ao banheiro e lavar o rosto. É como uma vontade imposta, shoperaueriana, como se não fosse possível escolhê-la. Quase um sentimento ambíguo. Soube anos depois que a velha morreu e senti saudades. Por nada. Decerto, pelo o que não foi. Irremediável desgraça: sentir afeto por tudo que não foi. É detestável saber que não me entendem. Paciência. Se vocês esperassem eu até contaria. Odeio aquela velha por tudo que ela poderia ter sido, conforme as minhas expectativas, mas não foi. E o que sei agora? Ela sobrevive em pequenas lembranças. Minúsculas é o melhor termo. Aquela velha de merda. Desculpe-me: não é minha intenção acusar as velhas. Não nos engane. Não tenho tempo algum. Estou quase próximo do fim e você exige que eu espere. Sabe, ele não ama o ócio. Está claro: ele ama o descaso. Se ele dorme é porque não quer falar conosco, pois deve saber que estamos aqui, que temos pressa. E, assim mesmo, permanece dormindo como se estivesse cansado. Cansado de quê? Penso que os poemas que ele recita não devem cansá-lo mais que a amolação dos viandantes. Não. Não queremos o dinheiro que ele nos enviou. Mande estas moedas podres para o inferno se ainda existir inferno. Ah, decerto, vocês deram para ele a melhor cama da aldeia. Oh oh oh. Mande o seu senhor para os diabos. Destarte, ele encontrará o que fazer.



Era uma saudade permanente. Íamos àquela casa somente quando alguém morria. Era comum que nos encontrássemos diante dos mortos. Meu Deus, eu tinha vontade de ser como eles (não como os mortos). Como os vivos daquela casa. Vontade de cruzar os braços e fumar cigarro como os homens e sentir dentro do corpo a velocidade de um automóvel. A morte estava lá. Sempre a morte deitava-se ali. Eles morriam cedo, enquanto o resto do mundo envelhecia. Enquanto as mulheres rezavam com os filhos. A morte era uma triste amiga. Sempre tive muito medo de morrer. E ainda estou vivo para vê-lo acordar. Os mortos ficavam misturados com a desordem da sala, da cozinha. Com as roupas do quarto. A televisão ligada o dia inteiro exibia-se para as paredes. Eles comiam como leões. Os mortos estavam sobre a mesa, entre os pratos. Eles comiam também os mortos e riam e riam e riam. Para que rir? Vi o velho morrer dia-a-dia, o velho apodrecer a esmo no piso da varanda. E vi aquilo como se a morte fosse o pagamento de suas misérias. E sentia alegria de vê-lo morrer, de vê-los todos morrerem. Perdoe-me: é, deveras, forte admitir isto. E sentia como se aquela casa foi um grande túmulo sem epitáfio.



Ele deitou sobre a cama como se tivesse cansado do seu próprio silêncio e esperou que ela também se deitasse. Quando ela veio e desligou a lâmpada ele tirou a faca que estava sob o travesseiro. Depois de matá-la ele se suicidou. Não vimos os corpos. Não houve coragem entre nós.



Tenho grandes esperanças. É algo até agradável. Tudo indica que não retornarei àquela casa. Há lugares que jamais retornarei. E há outros pelos quais sinto forte arrependimento de não ter ido. Algumas camas esperam para que eu durma nelas e deixe um tanto dos meus pesadelos ou do meu implacável desejo. Não condenem o sexo. Que tenho feito com as mãos? Durmo sempre à espera do outro corpo que virá com suas ternas carícias. Tenho pena de mim que não tenho nada. Não tente me depreciar. Não não não. Só espere. Fiz de mim uma miragem. Já morei em muitas casas. E já vi muitas janelas. Se eu morresse agora seria apenas um contratempo biológico. É cedo para que eu morra ou me mate. Por vezes, receio me matar antes da hora. O suicídio é um ritual. É em vão. Esta coisa de querer ser grande me atormenta. Dor amarga esta, a posteridade: um fragmento.



Ela me levou para o quarto e ordenou que eu ficasse calado sobre a cama e me fez sentir cócegas nas pernas. Tenho esperado de modo exagerado e penso. Ela me deixou nu e acendeu treze lâmpadas no quarto. Ela conhece o meu corpo mais que eu. Quando acordei ela trouxe chá numa xícara branca e sentou ao meu lado meio inquieta, rasgou algumas páginas do livro e enxugou o suor do meu rosto. Ela me beijou e me fez sentir frio. M. tem mania de ser misteriosa.


O que tenho agora? É esta vontade de dormir um pouco, de ficar quieto na cama para que ninguém perceba que estou em casa. Não sinto vontade alguma de falar com quem quer que seja e quando o telefone toca é como se um sino tocasse desesperadamente dentro de mim. Tenho vontade de desligar tudo e ficar quieto dentro da minha própria escuridão. Tenho medo de amar como as mulheres amam. Sim, é quase certo afirmar que faz muito tempo que não escrevo, nem telefono. Você repete, como se fosse uma verdade, que me tornei incomunicável. Não é tudo isto verdade, como não é verdade que eu os esqueci. Como poderia esquecê-los? Não sou tão pretensioso quanto pareço e, por mais que aparente estar distante, devo, com certeza, está presente nas conversas de todos. Devo dizer, com efeito, que sou eu que tenho me sentido solitário. Talvez por desejo próprio, mas a solidão de agora não é muito diferente da solidão que eu sentia quando morava com vocês ou quando estive em outras casas, morando com várias pessoas. Tenho impressão que eu me sinto solitário desde que nasci, o que não é nenhum mérito para mim. Não é mesmo nenhum mérito a tristeza. Mas apenas descrevo o que sinto e você, decerto, entenderá. Tenho também a impressão de que você é a única pessoa capaz de me entender, porque talvez isto que chamam de alma seja algo em nós muito parecido. Penso que adentrei definitivamente em um estado ardente de vazio, como se não tivesse nada para dizer que fosse, de fato, interessante, isto é, que me desse prazer de compartilhar. Penso que me tornei um homem seco, por mais que eu esbanje simpatia nas conversas informais, que mantenha um riso descarado no rosto, como se não houvesse tempo ruim. Eu sou uma farsa. Estranha para mim e para os demais. De repente tenho a sensação de que quanto mais procuro mais estou distante. Assim, tento inventar atividades amenas que me permitam sentir prazer, pelo menos numa pequena parte do tempo. Acho mesmo que guardo uma dose razoável de criatividade dentro do meu peito, com isso agüento o peso dos dias. Eu engano. Meu Deus, como estou me tornando um gênio na arte enganar (se isto for arte). Talvez eu consiga o grande feito de enganar a própria morte.





Quando pensei em escrever esta carta acreditei mesmo que escreveria algo grandioso, ademais não há momento em que eu não aspire a grandiosidade. E, por isso, eu sei, tenho tanto medo. O que não é novidade quando o que encontro em minhas andanças são pessoas medrosas. Porém, elas fingem. Como grandes atrizes elas fingem uma coragem extraordinária. Aqui, a cada palavra, sou tão parecido com o Sr. Ernesto López, o que é complexo, porque o meu fingimento chega a ser doentio. O Sr. Ernesto se suicidou a pouco tempo deixando comigo um túmulo inumerável de poemas. Mas ele era um homem corajoso, tanto é que amou com o próprio sangue, a ponto de escolher a morte. Não fique espantada com o que digo. Talvez um dia você entenda, ainda que não adentre o meu peito podre. Vou contar para você o que nem eu tenho certeza que sei de mim. Suponho, então.



Tentarei não fantasiar o que já é demasiado alegórico. Desde que vim para cá tenho sofrido. Saiba, não estou exagerando quando afirmo que tenho sofrido. E você, decerto, está me reprimindo: volte, então, para cá. O fato, minha irmã, é que não encontrei, até então, nenhum lugar que me fizesse feliz. Porque não são os lugares que determinam a minha felicidade. Sou eu que não consigo me sentir em paz em qualquer parte que seja, é dolorido o peso que me foi imposto, ou que eu me impus. Perdoe-me: não farei uma elegia à vida. Não espere que eu cantarole as esperanças, que exalte o que quer que seja. Não tenho olhos para o sublime. Na verdade, até hoje tento entender as aulas de Estética quando não tenho sono, isto me faz dormir. Com franqueza, não gosto de minha amargura. O meu vazio é resultado do meu cansaço. Chego ao fim do dia como se chegasse ao fim da vida. Vivo exausto. E já comecei a usar remédios para me sentir menos cansado. Compro numa farmácia aqui perto. Não é caro.


Lazzaro: Ali havia uma ponte. Acho que era uma das maiores da cidade.
Ernesto: Onde?
Lazzaro: Olhe, logo atrás daquela árvore da pracinha. Está vendo?
Ernesto: Ah... acho impossível que tivesse uma ponte ali.
Lazzaro: Pois acredite. Havia uma ponte exatamente atrás daquela árvore da pracinha, onde está passando, agora, aquela mulher de saia azul.
Ernesto: Sim, mas por que você lembra esta ponte com tanto entusiasmo?
Lazzaro: Meu caro, Ernesto, acredite foi graças àquela ponte que hoje estou aqui com você.
Ernesto: Gosto do seu tom esperançoso. Como isto aconteceu?
Lazzaro: Meu amigo, não aguentava mais aquele sofrimento interminável. Eles mataram muitos homens do partido... Como tudo por aqui mudou...
Ernesto: Ainda bem! Nunca andei por este lado da cidade, mas acho tudo por aqui um tanto triste.
Lazzaro: Eles acreditavam que eu era do partido e você sabe que nunca fui de partido algum. Eu apenas cria, como creio hoje, que o mundo, seja como for, poderia ser mais justo.
Ernesto: Você realmente crê?
Lazzaro: Por Deus! Você sabe que eu creio.
Ernesto: Você foi preso...
Lazzaro: É verdade! Foi lá que me prenderam, onde fica aquela pracinha.
Ernesto: aqui realmente mudou: não imagino uma prisão naquela praça, nem uma ponte.
Lazzaro: Não era uma prisão, isto é, não era oficialmente uma prisão. Era uma casa muito bonita. Ficamos presos, eu e os homens do partido, dentro do porão.
Ernesto: Dentro do porão? Que criativos. Como se não tornassem a nossa vida, mesmo aqui fora, um porão escuro.
Lazzaro: É... Havia uma janela, de onde entrava ar e luz. O que seria de nós não houvesse isso. Da janela podíamos vê a ponte.
Ernesto: Que tem a ponte?
Lazzaro: Durante meses a única alegria que eu tinha era olhar aquela ponte e vê, por vezes, o pequeno rosto das pessoas passando. Eu já havia esquecido como era um riso.
Ernesto: E como é um riso? Eu não sei como é um riso.
Lazaro: Escute! Tente entender. Para mim foi importante.
Ernesto: É que não costumo vê pessoas rindo, nem nas ruas nem nas pontes. Nem nas praças.
Lazzaro: talvez você nunca vá entender.
Ernesto: o que, Lazzaro?
Lazzaro: ... um dia vi um menino se aproximar da janela e comecei a asssoviar como um pássaro.
Ernesto: Talvez porque você quisesse escapar daquela gaiola.
Lazzaro: É. Você está certo. Eu queria escapar como qualquer pássaro.
Ernesto: E o que você fez?
Lazzaro: Um dos homens do partido convenceu o menino que nos trouxesse uma serra. Mas tínhamos um pouco de medo, pois Eles não sabíam que aquela janela dava para a rua.
Ernesto: o menino trouxe a serra?
Lazzaro: Trouxe!
Ernesto: É esquisito... não sei o que faria se estivesse lá.
Lazzaro: Você faria o que todos fazem, mesmo quando não estão lá.
Ernesto: Eu sei...
Lazzaro: Todos queremos escapar de qualquer jeito.
Ernesto: De qualquer lugar, a qualquer hora.
Lazzaro: depois que fugimos e tive que acompanhar os homens do partido. Era a única alternativa.
Ernesto: Não havia outra, Lazzaro. Não se culpe!
Lazzaro: Tive que deixar o país, tive que deixar tudo que eu tinha. Porque Eles, Eles sempre estão entre nós com suas algemas.
Ernesto: E nos prendem de qualquer maneira.
Lazzaro: Eu sei...
Ernesto: Eles o matariam se você tivesse ficado.
Lazzaro: Não. Eles me mataram de qualquer modo.
Ernesto: Não diga isto, assim você se parece comigo. Onde andam as tuas esperanças? Você sempre foi tão corajoso.
Lazzaro: Não, Ernesto, eu é que sou covarde. Você está enganado. Com toda a minha luta, eu é que sou covarde. Pensei que poderia mudar o mundo. Enquanto você sempre soube que não poderia mudá-lo.
Ernseto: eu confio em você e nunca disse nada contra a sua luta, sempre tentei ajudá-lo.
Lazzaro: Não é isto. Não estou cobrando nada de você. Enquanto eu cria que lutava você amou. O que adianta tanta luta se quando mais precisamos estamos sós.
Ernesto: Não volte a esta história, por favor. É demasiadamente dolorida para nós.
Lazzaro O que não é dolorido para nós?
Ernesto: Nada... esquece...
Lazzaro: ela sabe que eu a amava.
Ernesto: Como queria que ela ficasse com você se você estva preso e só tinha tempo para a luta e a luta, a sua luta.
Lazzaro: não fale assim.
Ernesto: perdoe-me, irmão.
Lazzaro: você sabe o que é perder um amor.
Ernesto: Eu sei...

Não é possível que eu me assuste tanto. Eu tento a cada segunda-feira organizar o quarto, mas não há mais jeito. Sempre a mesa está cheia de papel e a cama está tomada de roupa meio suja. Só separo um espaço adequado para que eu possa descentemente dormir. Não é justo que eu não durma. Tirem tudo de mim, menos o tempo sagrado que eu reservo para repousar sobre a cama. É uma necessecidade animal esta de dormir. Não se engane. A cada momento, em que jogo sobre a cama este corpo humano, rogo, no fundo do peito, para ficar definitivamente no reino dos sonhos. Sabe, quando eu durmo é como se buscasse um campo distante, onde pudesse respirar com alívio. O meu sono é fuga. Acho enfadonho falar de mim. Depois de um ano, sinto-e como se olhasse para trás e não tivesse nada de especial para contar, como se estas perambuções fossem fúteis. Meu Deus, é engraçado como tenho me tornado um animalzinho rabugento. Bem, não sei de nenhum patrício que venha pagar minhas contas. Eu tenho contas. O animalzinho tem contas. Não reclame: o homem deve somente... esqueça! Tudo o que devo é para o sustento do corpo. Nada mais. Que tenho feito pelos outros? Agora, falaremos de compaixão. Interessante! Quando aperta a agonia, lembra-se, enfim, dos outros. Os outros sofrem menos que nós.



Depois de um dia a esmo, sento-me. O que você dirá disto? Não diga nada quando não há nada para dizer. Espere até que as palavras cheguem para ocupar o vácuo. Para que o caos pareça razoável e se misture a esta ausência de silêncio. Recolho-me e é certo que isto não interessa em nada. Estes caminhos e estes sobrados fascinam meus olhos como num filme. De repente, poderia, sem ressalvas, despojar versos e desabafos em voz alta quando caminho para o museu. Ernesto, o meu amigo, vai comigo. Por Deus, a esta hora, que é tarde, estou só. Esta é a pior doença: não encontrar pares para que ouçam nossas vis palavras. Devo dizer: que é o homem, senão um andarilho solitário. Não temos razões para o engano: com eficiência, tentamos nos agregar, como um bando, porém estamos sós, como na hora da morte. A morte é somente o momento culminante da grande solidão que foi a vida, que é a vida. Devo também dizer – e não sinto nenhum orgulho disto – estou morto. E, em nada, tomo distância destes ossos misturados com terra. Agora, pergunto-lhe: que sou? Este cemitério infindo meio à cidade? Estas cruzes e estes anjos tenebrosos? Pior, minha irmã, não sou nada. Nada que fique para a história como um grande monumento ou o nome de uma rua ou de uma praça. Não me lembro. Por Deus, por esta noite que cresce diante dos meus olhos, não me lembro de nada que me faça ficar por alguns anos diante dos olhos dos homens. Que resta? Às vezes, o que nos resta, deveras, é este silenciar da noite cálida, quando nem os fantasmas se lembram que existimos. Nem as estrelas se lembram.

Bilhete para Dom (Rafael Coelho)





São Paulo, 23 de outubro 2008

Minha luta agora é brava e cansativa. Depois de um ano e dez meses como professor de Filosofia, cheguei ao limite desta profissão (creio que parecerá desagradável se eu usar o adjetivo profissão infeliz). Não a Filosofia. Adoro Filosofia. Mas a profissão de lecionar que é um castigo, menos para o corpo e mais para a alma.

Admiro em mim a clareza de perceber aquilo que me faz mal. Deixei o curso de Psicologia e fui para o Jornalismo, que é um divertimento agradável. Agora, preciso dizer adeus a este trabalho desgastante - em alguns instantes penso que inútil também.

Cara, não é nada fácil mudar de emprego nesta selva, São Paulo. E sei que mais tarde terei que lecionar numa faculdade, afinal estou no mestrado em Filosofia e terminando uma pós em Comunicação e Mídia. É tanto curso e muito cansaço.

Por vezes, tenho vontade de ficar na casa do Dom paulistano (a sua versão aqui em Sampa) e fumar e cheirar todas. Aí vem aquela obrigação que me trouxe da Amazônia para cá: eis-me aqui para vencer. Não dá para mergulhar em ilusões alucinógenas. Sobre a minha cama há um monte de papel. Há 200 envelopes, mil folhas sulfites ...


Rudinei Borges

Conversa de Rudinei Borges com Felipe Garcia





"Eu celebro a mim mesmo, e o que eu assumir você vai assumir, pois cada atómo que pertence a mim pertence a você". (Walt Whitman)



Felipe Garcia: Os gregos e os latinos tem muito que nos ensinar sobre a clareza das coisas. A poesia não é essa força esmagadora de uma forma, essa coisa descontrolada em que o poeta não sabe o que está dizendo. Um grito, em um poema, é tão suave como um volante hidráulico (sem futurismo!). Meu caro Borges, eu já vejo em sua poesia certa clareza e liberdade, principalmente em Ernesto, e fico muito feliz por isso. Eu estou desenvolvendo os versos nesse processo eterno de tentar buscar o íntimo das coisas livre de qualquer compreensão ou conhecimento de mundo. Poeta, não grite às alturas os teus versos, viva-os.


Rudinei Borges: Gosto do teu dizer. De fato, os gregos e os latinos tem muito que nos ensinar sobre a clareza das coisas. Não sou um poeta panfletário. Sigo apenas os meus mestres: Pessoa, Whitman, Eliot, Bukowski, Rilke e Lorca. Talvez eu tenha lido de mais estes caras. Parece-me que você e eu, porém, ainda não abraçamos a poesia pós-moderna de Leminski, por exemplo. A poesia visual. Você precisa conhecer "Folhas de relva" de Walt Whitman. Aí deveras entenderá a linha poética que sigo. Não sei e não consigo ser cerimonioso como os gregos e os latinos. Mas não sou panfletário.


Felipe Garcia: Ah, eu te compreendo, Borges! Realmente não é um panfletário. Eu conheço alguns poemas de Walt, sou sincero em dizê-lo, mas meu conhecimento da obra dele ainda é muito pequeno. Irei dar uma olhada melhor na obra dele. Sempre tenho esse olhar para frente, sem esquecer os grandes, tentado mudar alguma coisa, não sei. O caminho é certo, e o destino o fará. Até mais!
Avise-me quando você vier, assim eu planto no jardim as papoulas vermelhas que prometi faz tempo.

Avise-me e pintarei a casa, arrumarei a cerca e lavarei o chão.

Não. Não avise. Venha e terei certeza de que tudo isto será feito.


(Madrugada do dia 25 de outubro 2008)
Perdoa-me, por vezes.
Perdoa-me que o perdão é um sentimento vigoroso.
Perdoa-me, mas morde os meus lábios
E arranha as minhas costas.
(Tarde de 24 de outubro 2008)

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Para Ernesto López


(Por Rudinei Borges. Pintura em muro na Zona Leste de São Paulo. Autor anônimo. Dezembro 2007)

Naquele dia triste, peguei na mão de Ernesto,
Pedindo-lhe que me guiasse para um caminho
Correto, justo e honesto.
Ele me disse: “vai, segue sozinho,
O único caminho que há
É o meu protesto”.


Poema de Felipe Garcia, poeta do Rio Grande do Norte

sábado, 18 de outubro de 2008

Para Caio e Felipe






Que venha a morte maldita com
A traição tardia, com
Os cajados cálidos, com
O sussurro vago das paixões findáveis, com
Os violeiros do calvário, com
A cantoria triste das mulheres.
Que venha a cruz.

Que venha a agonia estéril, o
Asco dos soldados, o
Suor dos viajantes, a
Dor amargurada das mães.
Que venha a cruz.

Que venha a
Espada, a
Lágrima acre, o
Cântaro de vinho, o
Lenço, o
Manto, o
Ardor, o
Espinho.
Que venha a cruz.

Que venha o
Pássaro diante do sol, a
Tempestade crua, a
Terra árida, a
meretriz afoita, o
Galo (sem adjetivos).
Que venha a cruz.

Que venha Hitler, a
Mãe e o pai de Hitler.


Que venha Judas - terno e compadecido.
Que venha Judas como veio Heitor.
Que venha a cruz.

Que venha a
Minha mãe, os
Meus irmãos e o meu pai.

Que venha o
Meu amante, o
Meu patrão, o
Meu algoz.
Que venha a
Minha mãe.
Que venha a cruz.

E que venham os
Meus mortos, os
Meus vivos, os
Meus tataravôs e a
Srta. Rosângela, minha tia.

O
Jovem Thiago, meu primo.
Os
Parentes que não conheço,
Os
Parentes que odeio.

Os meus amigos e os meus inimigos.

Que venha a
Moça morena que amou o
Meu corpo e a
Minha alma às margens de um rio.
Que venha a cruz.


Que venha o
Meu filho e a
Minha filha.

A minha mulher e o meu marido.

O
Meu relógio,
Os
Meus discos,
Os
Meus livros,
A
Minha cama,
O
Meu diário.
O
Palhaço pequenino
Que eu trouxe duma viagem à Paraty em julho de 2007.
Que venha a cruz.

Que venha D. Quixote e Sancho Pança,
O menino Alfredo e Eutanázio,
A Sra. Amélia Lages e a Sra. Zizi Teles.
Que venha D. Rosalva Borges,
A Sra. Alzira e o Sr. Moacir Dias.
Que venha a cruz.

Que venha o diabo vestido de poeta
Ao lado de Ignacio Sánchez Mejías e Zaratustra.
O Sr. Freud, o Sr. Marx, o Sr. Nietzsche:
Que eles carreguem a cruz.

Que venham as ovelhas, os pastores, os elefantes,
Os trapezistas, os macacos, as cadelas no cio.
Que venha a Srta. Princeza, minha cadela morta.
Que venha Beethoven e Marcel Marceau.

Que venham com
Mísseis e bandeiras, com
Aviões e automóveis, com
Telefones e computadores, com
Gaitas e gramofones.

Que venham com
O crepúsculo ardendo nos olhos.
Que venha a cruz.

Que venham descalços e nus
Para chorar a morte do Cristo Jesus.

(Ernesto López)

14 de outubro 2008
São Paulo, SP
Quarto do sobrado no Ipiranga, à meia noite e quatro minutos.

Dentro do corpo



"A mim, a solidão não incomoda... detesto quando me roubam a solidão sem me oferecer verdadeiramente companhia..." (Nietzsche)


Queria todos os tóxicos dentro do meu corpo.

Dentro do meu corpo todos os cânceres.

Dentro da minha boca a saliva de Leonardo Da Vinci.



(Ernesto López)

sábado, 2 de agosto de 2008

O anjo de mármore


Texto da tarde do dia 2 de agosto possivelmente para o romance "O anjo de mármore"


(Cemitério Sto. Antônio, em Itaituba, PA. Janeiro 2006 - Por Pablo Enrique Xavier)


Talvez um dia eu deite o corpo sobre a cama e não sinta mais saudades. E neste dia não estarei mais aqui. Irei longe, para além dos campos, como aquele poeta que amou Duíno. Longe com o meu anjo, deitado sobre as suas asas e a alvura de suas vestes. Longe, para os trigais, para as colinas onde as papoulas germinam. Longe, mas estarei sempre no cais. Longe, mas quando chegar a tardinha voltarei a cada badalada do sino. E terei nas mãos a calidez do meu menino. E viveremos juntos às margens deste rio esverdeado. Sem os banzeiros e nem as tempestades. Viveremos juntos numa cabana na floresta. Em qualquer lugar que seja terno.

Tentei escrever, mas já é tarde e o meu corpo reza o seu próprio desespero. A minha agonia não vale uma gota do seu sacrifício. Não espero mais nada, nem um pedaço de pão, nem um grama de esperanças. Por isso, entrego-me a este pântano que não conheço, a este deus miserável e oculto. Por isso, deito-me na relva e abraço os espinhos. Não há dor maior. Só a tardinha que se perde no meu silêncio. Que devo dizer? Que hoje sou um homem triste quando prezam pela alegria? Não devo dizer.

Deitei o meu amado dentro do meu peito. E ele dorme agora como um menino. E aqueço a alma com a sua poesia, com o seu cantar matutino. Do seu rosto arranco todo o mármore. E deixo que ele levante vôo para os rochedos distantes. Não sou herói. Porém, meu caro Jude, amei mais que qualquer ser na face da terra. Talvez por isso eu sofra mais que qualquer ser na face da terra. Talvez por isso eu grite. Descanse, meu caro. Descanse. Porque quando a noite chega as papoulas adormecem, resguardando energia para a alvorada. Descanse, porque eu não consigo fechar os olhos por um instante. Porque o meu castigo é olhar os dias passarem por esta janela e odiá-los como a um inimigo mortal. Descanse e depois me conte a respeito do que você sonhou ontem à noite, pois tenho saudades de sonhar como os meninos do trapiche. (Por Ernesto López)

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Texto do dia 29 de julho 2008 para "O Livro da Embriaguez"


(Tardinha no Ipiranga, São Paulo - Por Rudinei Borges)


O que fazer, meu caro? Esta é a pergunta de todas as manhãs. Antes eu não perguntasse nada, não vivesse com estas indagações corroendo o cérebro. Antes não fizesse nada. Mas quando não faço nada me culpo, porque as pessoas são céleres; porque de minha cama ouço os automóveis seguindo para o infinito e as pessoas murmuram às cinco horas da manhã. E quando acordo às cinco horas da manhã tenho sono o restante do dia. Como tenho agora. E ter sono não é nenhuma vergonha, como também não é nenhum mérito. Se eu dormisse menos seria maior e as minhas ambições talvez estivessem no ápice.

O que posso querer de mim e do mundo e das pessoas? Que eu seja melhor, que o mundo seja melhor, que as pessoas sejam melhores? Decerto, não haveria tanta bondade para tantas coisas. Não pedi para estar aqui e tudo aqui é estranho. Pensei que com os anos tudo se tornaria familiar e que eu teria alguma vontade de andar por estes caminhos. No entanto, o mundo é feio e eu mesmo sou feio. E não lembro de contemplar por estes anos qualquer coisa que seja semelhante ao que dizem que é a beleza. É uma idéia vaga, um devaneio vão.



(Ipiranga, São Paulo - Por Rudinei Borges)



Não, não posso querer nada que não seja uma idealização patética. Autorizo, então, o sofrimento e a morte. E ainda assim odeio o sofrimento e a morte. Não sou perfeito, porém não tenho desejado a perfeição. Não sou belo, porém não tenho desejado a beleza. E o pior que podemos encontrar num homem é sua capacidade de não desejar. E aqueles que não desejam não são mais mortos-vivos que aqueles que desejam. Temos uma multidão de fantasmas. Ser otário é uma atividade divertida, porque o otário não tem o que esperar a não ser um costumeiro desprezo das coisas das pessoas e de si mesmo.


Estas vozes cansam. O sono e a falta de sono cansam. Olho as pessoas e o que elas produzem. Olho para estes homens construindo estas casas. Olho para mim. Queria sentir orgulho disso tudo, amado Franz. Queria amar estas vozes, estes homens construindo estas casas amarelas. Contudo, nada. Nada vem, senão este aperto de cada manhã. Esta vontade de vomitar a própria existência. (Ernesto López)