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sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Aperto, esboço de um romance





O romance em primeira pessoa conta as alucinações e devaneios de um homem que mora sozinho em um apartamento. Ele cola catálogos na parede e observa as pessoas pela janela; inventa histórias para essas pessoas, conversa com seus personagens e com personagens de outros romances, como os de Kafka; conversará com Gecor Samsa de “A metamorfose”, com o jejuador do conto “Artista de fome”. Também terá conversas com Eutanázio, personagem de Dalcídio Jurandir no romance "Chove nos campos de Cachoeira". Os três são homens doentes e ele cuidará deles. Tratará de suas doenças. Todos os personagens com quem conversa estão próximos da morte. É um romance, de certo modo, sobre a morte e o fardo de existir.

Este homem não tem nome. Ninguém sabe quem ele é, sua biografia. O romance é uma narrativa sempre movimentada. No fim ele estará cansado do aperto do apartamento, do aperto existencial e verá as paredes o engolirem. Os livros, os catálogos que ele coleciona o engolirão.

O homem moderno vive em um aperto, a vida é um aperto.

(São Paulo, 20 de fevereiro 2007. Sentado de frente de uma janela aberta para a rua Cipriano Barata, Ipiranga. Estava sozinho e olhava os pedreiros reformando uma casa).



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O disco movimentando-se. O disco e a voz do poeta movimentando-se no gramofone. Meu Deus, o gramofone é velho e sou tão jovem aqui sozinho. Por Deus, tão velho, como o gramofone de um médico, sento-me sozinho no sofá da sala. E a voz do poeta sonora e triste quase some. Não, não sou eu que estou surdo. É a voz do poeta que é fraca. O poeta é fraco, é um homem franzino, desses que não se dá um pedaço de pão velho. Mas a poesia dele é grande. E ele invade a minha sala, senta-se sozinho comigo no meu sofá. Não é a voz do disco no gramofone que fala, é o poeta que veio, nesta tarde, recitar para mim os seus poemas. Mas o poeta é velho. Meus Deus, ele até rir. Mas ele é triste. O poeta é triste. E o que menos quero é a tristeza, porque já a tenho suficientemente. E o disco movimenta-se, a voz do poeta sentado movimenta-se com os homens fora da janela derrubando a parede de uma casa velha. Vão construir uma casa nova, uma vida nova. O pedreiro olha uma mulher que passa e rir. O pedreiro rir. Meu Deus, o pedreiro rir. E o disco no gramofone pára, os automóveis param e todos, agora, ouvem a voz franzina do poeta franzino, recitando pessoalmente um poema franzino. E olham todos para a minha janela e me escondo, não quero ser visto. Não quero que saibam quem mora no andar de cima da casa mil nove centos e catorze. Não quero, não podem me ver. Que vejam o poeta, mas ao não a mim. Que ouçam o poeta, pois sou mudo, pois sou invisível, pois sou triste. E as ruas fazem silêncio, os gritos findam e todos querem ouvir aquela voz franzina recitando um poema sobre o mundo. Aquela voz que é minha, que veio para mim, para compartilhar a minha velhice e a minha tristeza. Mas não sou triste, sou apenas um homem sozinho. E a minha casa está cheia. E cheia a minha casa é solitária. E cheio sou distante. Desligo o gramofone, guardo o disco. Não quero aquele poeta aqui. Perdoem-me, mas tenho de fechar a janela. Não quero que vejam nada desta casa. Deixem o poeta recitar apenas para mim os seus poemas. O poeta é meu. Não posso dividí-lo. A mulher voltou-se para o pedreiro e, agora, a mulher beija o pedreiro. A mulher ama o pedreiro, a mulher terá muitos filhos com ele. A mulher será feliz. Eu sei que eles serão felizes. Não me proíbam de dizer que eles serão felizes e que um filho deles será um poeta franzino, de voz franzina e será meu amigo (meu grande amigo) e, por vezes, entrará na sala de minha casa, sentará no sofá e recitará para mim poemas sobre o mundo. Sim, é o filho do pedreiro e da mulher que passa na rua que, neste instante, recita para mim um poema e faz crê que posso rir e faz rir os meus enfermos. O menino cresceu, o menino cresceu e não quis ser pedreiro como o pai. O menino é poeta e é triste e é sozinho. O menino mora sozinho no andar de cima de uma casa, o menino olha por horas sem fim as pessoas passando na rua. O menino não tem mulher, não tem filhos, não tem amigos. O menino mora sozinho. O menino é sozinho e por isso veio à minha casa recitar um poema para mim. Um poema sobre o mundo. Um poema grande como o mundo. E as pessoas querem escutá-lo, mesmo que ele seja quase mudo, inexpressivo. O pedreiro me convidou para o casamento, mas não quis ir, não posso ir. O que vou fazer em um casamento. Não gosto de casamentos. Casamento é a única coisa que me faz rir. Não posso rir do pedreiro. Seria cruel. E não gosto de ser cruel.

Hoje, a mulher passou na rua e de novo o pedreiro olhou para ela. E riu. Ela olhou para ele. Ela riu. O pedreiro trouxe uma flor franzina, vermelha como a tarde. Mas a tarde não é vermelha. O pedreiro deu a flor para a mulher e ela foi embora. A mulher veio a minha casa.Como? Não posso, eu não posso recebê-la. Não conheço esta mulher. Desculpe-me a ousadia, mas somente o senhor pode dizer o que realmente devo fazer. Não faria nada sozinha, não saberia. Não finja que não me conhece. O senhor me conhece mais que eu mesma. O senhor sabe que sou uma jovem viúva e há anos procuro livrá-me desde véu de penúria, deste luto. E que não agüento mais suportar o espectro do meu falecido marido sobre os meus ombros. Que as pessoas não sabem que sou viúva isto é certo. Mas que a viuvez me distancia das pessoas isto é mais certo ainda. Quero somente _ e o senhor entenderá, porque o senhor é o homem mais inteligente que conheço_, reivindicar o direito de ser feliz. Não que o senhor tenha me negado isso, mas que o senhor anda demasiadamente ocupado e não tem lembrado do meu caso. Há anos tenho tentado fazer com que o senhor se lembre de mim. Há um tempo descobri onde o senhor mora, mas não ousei vir a sua casa, sei que o senhor não me receberia, como não recebe ninguém há anos, somente os seus enfermos. Sei que o senhor é um homem generoso. Falam nas ruas que o senhor tem amado Gegor, que o senhor tem tratado da doença deste pobre homem como um pai. Tenho passado na sua rua há meses, mas somente quando o pedreiro olhou para mim o senhor percebeu. Recorde-se, sou a viúva de um dos Buendía. O seu esquecimento tem me condenado ao sofrimento e a solidão. Permita-me casar com aquele jovem pedreiro, permita-me amá-lo e ter muitos filhos com ele. Não reivindicarei mais nada; peço, que após tanto sofrimento, o senhor me recompense com um tanto de paz. Nada mais do que o que eu mereça. Apenas o necessário. Alguns dizem que o senhor tem feito justiça, mas sei que o senhor não gosta do termo justiceiro. Contudo, sabemos o que o senhor pode fazer, então faça algo por mim. O meu pedido é reles, menor que de outrem. Não peço riquezas, nem prestígios. Não peço grandezas. Peço somente para viver, por um tempo que seja, este amor. Sim, que o senhor depois resolva finalizar a minha existência ou a de meu amado, mas antes que isto aconteça, permita-me primeiro experimentar, por um instante, o amor deste homem. Que o senhor é um homem amargurado todos sabem, mas não temos a obrigação de sofrer porque o senhor sofre. Ninguém diz isto ao senhor, mas tomei a liberdade de dizer: o senhor tem me feito sofrer com suas neuroses e esquecimentos. Que o senhor é apático, um escritor fracassado, que nenhuma mulher olha para o senhor, que a sua vida é colar catálogos nas paredes do seu apartamento... isto todos sabem. Que temos com isto? Não iria dizer, mas, agora, sinto que devo dizer a verdade: não sei de outra pessoa que tenha nos feito sofrer tanto. Que o senhor prefira a escuridão desta sala... estes móveis empoeirados... mas deixe-me ser amada por aquele pedreiro. Deixe-me ser acariciada por suas mãos, deixe-me fazer sexo com ele. Deixe que ele construa uma casa para mim e nossos filhos. O senhor não tem o direito de impedir isto. Não, não tem.